Blog Rio Preto Noutros Tempos - por Rodrigo Magalhães*
Preciosos
documentos sobre os primórdios da cidade de Rio Preto - sita na zona da mata
mineira, de inestimável valor histórico, foram encontrados recentemente pelo
pesquisador Marcos Paulo de Souza Miranda, membro do Instituto Histórico e
Geográfico de Minas Gerais, nos Arquivos Paroquiais de Barbacena/MG. Alguns
datam do fim do século XVIII e revelam que o lugar onde fora erigida a
primitiva capela de Nosso Senhor dos Passos local, além de ser o Marco Zero da
cidade, pode agora ser considerado como um dos cemitérios a céu aberto, ainda
em atividade, mais antigos do Brasil!
Presídio
do Rio Preto
Nos
últimos anos coligimos uma série de documentos que ratificam a existência
daquela que acreditamos ser a pioneira edificação da cidade de Rio Preto. Tratava-se
de uma singela capela, que existiu até meados do século XIX. Ela teria sido
construída por volta de 1755, estrategicamente em terreno elevado, defronte o
rio Preto e situada nas proximidades da movimentada rota de contrabando do ouro,
que descia da região mineradora rumo aos portos do Rio de Janeiro, passando justamente
pelo Vale do Rio Preto - um trajeto mais curto e livre de impostos.
Além
de servir de uma espécie de marcação a fim de guiar esses primeiros povoadores que
durante o século XVIII se utilizavam da chamada “Passagem do Rio Preto”, no entorno desta capela foram surgindo as
primeiras habitações da atual cidade. No local que foi batizado justamente de Morro dos Beatos foi erigida essa
primeira capela da incipiente povoação, então denominada de Presídio do Rio Preto, sendo que por
ordem da Coroa portuguesa, em janeiro de 1780, foi estabelecida uma guarnição
militar na localidade com o intuito de controlar a extração do ouro no rio
Preto e em seus afluentes, onde o metal precioso acabara de ser descoberto em
grande quantidade.
De
acordo com registros diversos, podemos afirmar que os corpos desses primeiros
desbravadores e fundadores da cidade foram sepultados no adro da capela, ou
dentro dela (nas proximidades do Cruzeiro de madeira, ao final do passeio central do cemitério, aos fundos), como era de costume naquela época no Brasil, sendo que não existiam
locais destinados especificamente para servir de cemitério. Quando não se
enterrava o ente querido na própria propriedade rural, fazia-se o seu
sepultamento dentro ou no entorno da igreja mais próxima. Por isso mesmo a
palavra cemitério, em sua origem latina, designava a parte exterior da igreja
(adro), onde se enterravam os católicos.
| Murada de Pedra, colunas e portal de acesso ao cemitério de Rio Preto. Foto: Rodrigo Magalhães. |
Ermida do Rio Preto
Em
14 de agosto de 1791, quando Barbacena foi elevada a vila, uma de suas capelas
filiadas era justamente a “do distrito da
Aplicação de Nosso Senhor dos Passos do Rio Preto”.[1] E
foi justamente na cidade de Barbacena, nos registros da Igreja Católica, que se
encontraram recentemente batismos, sepultamentos e até casamentos ocorridos na Ermida do Rio Preto, muitos datados do final
do século XVIII, inclusive.[2]
Portanto,
cerca de 230 anos depois de celebrados estes atos religiosos em Rio Preto, os
documentos agora descobertos não só ratificam a existência da primitiva capela
de Nosso Senhor dos Passos, como também revelam que ela não era tão pequena
como se imaginou inicialmente, pela elevada quantidade de pessoas enterradas
dentro da mesma; que esta ermida foi a pioneira do Vale do Rio Preto, uma vez
que lá foi sepultado o primeiro padre a atuar oficialmente na região, além de
escravizados de origem africana e até mesmo indígenas; e, por fim, a surpreendente
informação de que o local já era destinado especificamente a cemitério, desde
1796!
Batizados
“Aos 12 de agosto de 1798, na Ermida do Rio
Preto, filial desta Matriz de Barbacena, o padre Joaquim Cláudio de Mendonça,
de licença minha, batizou e pôs os santos óleos a Francisco, inocente, filho
legítimo de Elias e Quitéria, pardos, escravos de Manoel Rodrigues Rabelo.
Padrinhos Joaquim Rodrigues e Angélica, filhos do dito Rabelo, todos desta
Freguesia. Do que mandei fazer este assento, que assinei. Vigário D. José
Agostinho Pitta de Castro.”
O
Capitão Manoel Rodrigues Rabelo parece ter sido um dos primeiros moradores de
Rio Preto. Em sociedade com o Capitão José Antônio Machado (de Santa Rita) e
com Alferes Manoel Esteves dos Reis, eles chegaram a possuir trinta e tantas
datas minerais no Rio Preto (autorização para extrair ouro), desde o final dos
1700. Ele era o proprietário da Fazenda Porto Manso (Barreado) e do território
onde hoje se assenta a parte central da cidade de Rio Preto.
“Aos 26 de dezembro de 1799, na Ermida do Rio
Preto, filial desta Matriz de Barbacena, o padre Joaquim Cláudio de Mendonça
pôs Santos óleos a Miguel, inoccente, filho legítimo de Domingos Fagundes de
Andrade e de Helena do Espírito do Santo. Padrinhos: Miguel Rodrigues da Costa
e Helena, bisavó do batizado. Todos desta Freguesia”.
O
Capitão Miguel Rodrigues da Costa foi outro abastado minerador do Descoberto do
Rio Preto e uma das primeiras autoridades da localidade. Ele era o proprietário
da Fazenda da Conceição, e tinha licença para explorar o ouro no Sertão do Rio
Preto desde 1790. Foi o comandante do Presídio do Rio Preto e também diretor
dos índios coroados na região.
“Aos 26 de janeiro de 1807 anos na Ermida do
Senhor dos Passos do Rio Preto, filial desta Matriz de Barbacena, o padre José
Luiz Côrrea, de licença minha batizou e pôs os santos óleos a Antônio,
inocente, filho natural de Teodora Ferreira Índia. Foram padrinhos: Antônio
José de Freitas e Inez Índia, do que mandei fazer...”
Interessante
observar que dentre os numerosos batizados ocorridos na Ermida de Rio Preto,
além de aparecem alguns escravos, constam também indígenas. No registro acima,
não só a mãe do batizado (“Teodora
Ferreira Índia”), mas também a madrinha, inclusive, era indígena (“Inez Índia”).
Casamentos
“Aos 16 de fevereiro de 1801 anos, depois de
ter feito as denunciações, na forma do sagrado concílio tridentino e
constituições deste Bispado, sem se descobrir impedimento algum e com provisão
do Reverendo Doutor vigário da Vara desta Comarca, na Ermida do Rio Preto, o
Padre João Ferreira Leite de Oliveira, de licença minha, assistiu ao sacramento
de matrimônio dos contraentes, Antônio Carlos Vieira, filho do doutor Francisco
Vieira de Souza e de Dona Francisca Maria de Esperança, natural da Freguesia de
São João Del Rei, e Dona Ângela Rosa Maria, filha do capitão Manoel Rodrigues
Rabelo e de Dona Úrsula Anastácia Maria do Couto, natural da Freguesia de Santa
Bárbara, e lhes deu as bênçãos nupciais na forma do ritual romano, do que foram
testemunhas capitão Manoel Rodrigues Rabelo e Dona Úrsula Anastácia Maria do
Couto, de que mandei fazer este assento que assinei”.
Vê-se
que a capela tinha estrutura suficiente para sediar casamentos, inclusive. No
caso do matrimônio acima transcrito, a noiva era de São João del-Rei/MG, sede
da comarca do Rio das Mortes, da qual a região de Rio Preto fazia parte, e o
seu pai era um “doutor” daquela localidade.
Sepultamentos
Mas
a sua localização exata somente foi possível devido à descoberta de alguns
registros de sepultamentos ocorridos dentro da capela, apontada nesses
documentos do final do século XVIII como “Ermida
de Nosso Senhor dos Passos do Rio Preto, filial da Matriz de Barbacena”. Algumas
dessas antigas sepulturas de pedras foram encontradas nas proximidades de um Cruzeiro de madeira,
na parte central do atual cemitério. Ou seja, no lugar onde existiu a primitiva
igreja, no exato local em que um antigo e grande Cruzeiro de braúna (com cerca de 4 metros de altura), que apresentava desenhos nas juntas e nas extremidades, foi substituído há cerca de 8 anos por um menor e mais simples.
Chama
a atenção, ainda, a existência de registros de sepultamentos de indígenas,
sendo que o mais comum de se encontrar é o batismo deles. Se não bastasse,
constatamos que alguns desses índios foram sepultados dentro da capela, e não
no adro. Isto porque naquela época as únicas pessoas que eram enterradas dentro
das igrejas, via de regra, eram os católicos pertencentes à nobreza rural, os
militares e os padres. Acreditava-se que quanto mais a pessoa tinha condições
de contribuir para a caridade, mais perto do altar ela seria enterrada. Assim,
a explicação para os enterros dentro das igrejas era muito simples: o morto
sepultado dentro igreja, tinha sua alma protegida pelos santos, anjos e,
sobretudo por Deus.
“Aos 6
de novembro de 1809 anos faleceu Francisco, inocente, filho de Francisca Índia;
foi encomendada de licença minha, pelo padre Antônio Vicente de Almada, e
sepultado dentro da Ermida de Nosso Senhor dos Passos de Rio Preto, por ordem
do Capitão Miguel Rodrigues da Costa”.
“Aos 22 de setembro de 1810 anos, faleceu com
sacramentos da penitência e unção, José Índio, adulto; foi encomendado de
licença minha pelo padre Antônio Vicente de Almada e sepultado dentro da Ermida
do Senhor dos Passos do Rio Preto, filial desta matriz de Barbacena, do que
mandei fazer o presente assento. Vigário José Agostinho Fialho de Castro”.
Também
há registro de sepultamento de um padre português, o primeiro a residir em Rio
Preto e celebrar atos religiosos na região. Em 1811 ele requereu uma sesmaria,
do território onde atualmente se acha o distrito de Parapeúna (Valença/RJ).
Pelo seu testamento, vê-se que ele deixou uma elevada quantia para edificação
de uma nova igreja em Rio Preto:
“Aos 17 de agosto de 1814 anos, faleceu com
todos os sacramentos o Padre Antônio Vicente de Almada; foi amortalhado nas
vestes sacerdotais e acompanhados por dois sacerdotes, e ambos lhe fizeram
missa de corpo presente. Ele foi encomendado de licença minha pelo Padre José
Ferreira Paiva, e sepultado na Ermida do Senhor dos Passos de Rio Preto, filial
desta Matriz de Barbacena. Fiz o seu testamento como abaixo se declara”.
Cemitério
O
documento mais surpreendente, no entanto, data de 1796, em que consta
expressamente que o cemitério de Rio Preto já existia, e ainda é assinado pelo
vigário de Barbacena:
“Aos 25 de novembro de 1796, faleceu sem sacramento
o José Angola, escravo de Manoel Pinto Cardoso, foi encomendado de licença
minha pelo padre José Ferreira de Paiva, e sepultado no Cemitério de Rio Preto,
filial desta Matriz de Barbacena. Do que mandei fazer esse assento. O vigário,
dom Agostinho Pitta de Castro”.
Assim,
além de guardar muitos restos mortais do século XVIII, quando ainda era
igreja-cemitério, fato que, por si só, resgata a história de parte
significativa do município de Rio Preto e de toda a região, o cemitério de
Nosso Senhor dos Passos figura como um dos mais antigos de Minas Gerais e do
Brasil.
Isso
porque a construção de cemitérios públicos iniciou-se apenas em meados do
século XIX, e era uma inovação urbana recente. Somente pouco a pouco o conceito
de igreja-cemitério como coisa única foi se modificando, e apenas na segunda
metade dos anos oitocentistas esses dois conceitos passaram a significar
construções distintas. Por essa razão, a revelação de um documento idôneo,
descoberto em fonte fidedigna, datado de 1796, que de maneira indubitável
demonstra que o espaço destinado ao cemitério em Rio Preto naquele tempo
já era desvinculado da antiga igreja que lá existiu, situa o Senhor dos Passos
como um dos sepulcrários, ainda em atividade, mais antigos de que se tem
notícia em todo o país.
Patrimônio Cultural
Os cemitérios podem ser considerados como patrimônio histórico cultural,
uma vez que os restos mortais da pessoa sepultada possui também uma memória
coletiva que vai sendo esquecida ao longo dos anos pelos vivos.[3]
Além de uma antiga necrópole setecentista, com edificações dos séculos
XVIII e XIX (muradas, escadas, colunas, sepulturas, etc.), o cemitério de Nosso
Senhor dos Passos de Rio Preto certamente é um relicário da arquitetura
fúnebre, um recanto de memórias e contém curiosidades que ajudam a contar a
história da cidade e do Vale do Rio Preto.
Afinal, ali estão sepultados corpos de indígenas, de escravizados de
origem africana, de europeus, de padres, de militares, de fazendeiros, enfim,
os pioneiros personagens da historiografia regional. Também repousam naquele
pedaço de chão os restos mortais de algumas personalidades de Rio Preto, como o
Dr. Henrique Badaró Portugal, médico e deputado estadual, e o Dr. Antônio
Esperidião Gomes da Silva, advogado e deputado federal.
| Sepultura do século XVIII. Foto: Rodrigo Magalhães. |
No entanto, o seu morador mais ilustre está sepultado bem na entrada do
cemitério, ao lado esquerdo do passeio central. Ali jaz o corpo do português
Manoel da Silva Pereira Júnior, que certamente é o túmulo mais visitado do
cemitério de Nosso Senhor dos Passos de Rio Preto, especialmente no feriado de
finados, quando em torno do antigo gradil de ferro são depositadas dezenas de
velas com pedidos de preces ou em agradecimento por graças recebidas por
intermédio de sua alma. Isso porque Manoel Pereira, fazendeiro, empresário, liberal
e abolicionista, decidido a abrir uma estrada que beneficiaria milhares de
moradores de Minas Gerais, acabou se tornando inimigo da família mais abastada
e influente do Vale do Rio Preto, que através de um de seus membros mandou
assassinar brutalmente o altruísta português, aos 20 de maio de 1863. Seu corpo
foi jogado no meio do rio Preto e, mesmo amarrado a enormes pedras, três dias
depois apareceu sob as águas correntes do rio, estático, com as mãos para o
alto. “São as mãos de Pereira implorando
justiça!” – logo disseram as pessoas que presenciaram a cena. Desde então, o
mártir Manoel Pereira é considerado uma espécie de santo regional, e o seu
túmulo no cemitério Senhor dos Passos recebe muitos devotos anualmente!
“O crime foi cometido por escravos da Fazenda dos Fortes. O corpo, amarrado a uma pedra comprida, tipo pedra ‘cabo verde’, com correntes de carros de bois da própria Fazenda-maestra e para ficar ‘melhor seguro’, ainda foi completado o amarrilho, com o melhor ‘boçal’ da Fazenda, espécie de cabresto de couro, que se coloca na boca dos animais (equídeos), e que tem focinheira que não permite que comam. Poucos dias após o ‘sumiço’ do Pereira, um viandante que passava pela ‘Cava Grande’ viu aflorando, das águas do rio, que baixara subitamente (isto é comum no mês de maio) as mãos de pessoa humana. Eram as mãos do Pereira – ‘implorando justiça’, diz o povo! - que se soltaram das correntes ou do ‘boçal’... O processo foi rumoroso como noticiou em várias edições o ‘Jornal do Comércio’, da Corte... Hoje, a alma do Pereira é invocada para graças especiais e seu túmulo, no cemitério da Irmandade de Nosso Senhor dos Passos, no Rio Preto, constantemente tem velas acesas, enchendo-se mesmo delas no dia de Finados, 2 de novembro; é a anônima, duradoura e justiceira homenagem popular” (REVISTA DO INSTITUTO HISTÓRICO E GEOGRÁFICO DE MINAS GERAIS, por DR. HENRIQUE FURTADO PORTUGAL).
| Túmulo do mártir Manoel Pereira Foto: Rodrigo Magalhães. |
O mais antigo do Brasil?!
Para se ter uma noção dessa antiguidade, através de uma pesquisa na
internet, apresenta-nos o cemitério de Parelheiros como o espaço mais antigo da
cidade de São Paulo/SP destinado especificamente ao sepultamento dos mortos,
que foi fundado em 1829, em terreno doado pelo próprio Imperador D. Pedro I,
ativista dos cemitérios a céu aberto, em uma de suas passagens à região. Foi D.
Pedro I, inclusive, quem promulgou posteriormente uma lei que bania os enterros
dentro das Igrejas.[4]
Mas o British Burial Ground, fundado
em 1811, que é considerado o cemitério a céu aberto mais antigo do Brasil ainda
em atividade. Mais conhecido como cemitério dos Ingleses, é uma necrópole
particular, de orientação originalmente protestante, localizada no bairro da
Gamboa, na cidade do Rio de Janeiro.[5]
Assim, por todo o exposto, de acordo com o supramencionado registro de
sepultamento, datado de 1796, e como o cemitério de Nosso Senhor dos Passos de
Rio Preto ainda se encontra em atividade, aparentemente esse sepulcrário poderá
ser considerado o mais antigo do país, sendo que se encontra em funcionamento
de maneira ininterrupta há pelo menos 225 anos. Mas certamente ainda há muita
informação para ser revelada sobre esse bicentenário cemitério. Penso que o
tema é merecedor de estudos mais aprofundados. E, como História é construção, a
história do cemitério de Rio Preto, localizado na zona da mata mineira,
definitivamente, merece constar dos anais da História de Minas Gerais e do Brasil!
| Escadaria, muradas e colunas de cantaria do cemitério de Rio Preto. Foto: Rodrigo Magalhães.
|
[1]
ARAÚJO, José Marinho de. Monografia histórico-corográfico do Município de Bom
Jardim de
Minas. Manuscrito não publicado, 1952.
[2]
Registro da Igreja Católica de Barbacena/MG (1706/1999).
[3] https://saopauloantiga.com.br/conheca-o-mais-antigo-cemiterio-de-sao-paulo/
[4] Idem.
[5] https://www.familysearch.org/wiki/pt/Brasil_Cemitérios
Prezado Rodrigo Magalhães: gostaria de manter contato com você. Estudei de 1949 a 1952 em Rio Preto (MG). Meu nome, Mário Alves de Oliveira. Meu e-mail, . Vivo no Rio, no Recreio dos Bandeirantes, tenho 83 anos. Abraços.
ResponderExcluir