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terça-feira, 12 de janeiro de 2021

CEMITÉRIO SENHOR DOS PASSOS: MARCO ZERO DA CIDADE DE RIO PRETO!

 

Muro de alvenaria de pedra do Cemitério Senhor dos Passos de Rio Preto/MG.
Foto: Livro Trabalhos em pedra e ofício da cantaria, de Ricardo Cristofaro.

Blog Rio Preto Noutros Tempos – por Rodrigo Magalhães*

Documentos encontrados nos últimos anos confirmam a existência da Ermida de Senhor dos Passos, também chamada de Matriz Velha – a primeira igreja de Rio Preto e, possivelmente, a pioneira edificação da cidade e ponto de origem da povoação. Tratava-se de uma singela capela, que se situava bem no centro do atual cemitério de Nosso Senhor dos Passos, no Morro dos Pintos, que outrora era denominado justamente de Morro dos Beatos, local que pode ser considerado o Marco Zero da cidade de Rio Preto!

Ermida de Santa Efigênia, no município de Sabará/MG (séc. 18).
Foto: IEPHA
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Ermida

            Essa capela foi erigida estrategicamente em terreno elevado, situado na antiga rota bandeirante (e depois, rota do contrabando do ouro). Ela servia de uma espécie de marcação a fim de guiar os primeiros viajantes que no início dos anos 1700 já haviam adentrado a chamada Passagem do Rio Preto rumo aos portos do Rio de Janeiro e, em sentido contrário, com destino ao Norte (Goiás).

            Ela foi construída em uma pequena área plana de um terreno montanhoso, onde também foi erguido um antigo e modesto cruzeiro feito de madeira tosca. Tratava-se de uma humilde capela. Simples e pequena, sob a invocação de uma imagem de Nosso Senhor dos Passos, possivelmente trazida da região do rio das Mortes, onde o Senhor dos Passos já era devotado e possuía Irmandade desde o início dos setecentos, sendo que Rio Preto era um território integrante da comarca de Rio das Mortes.

Provavelmente, era sustentada por toscos esteios de madeira, com paredes de palmito e ripas, ligadas por cipó Imbé e emboçadas por ligeiras camadas de barro, com teto formado de ramos de palmeiras, tal como outras capelas construídas nesse período.

O documento mais antigo que atesta a existência dessa Ermida data de 1791. Em 14 de agosto daquele ano, quando Barbacena foi elevada a Vila, uma de suas capelas filiadas era justamente a “do distrito da Aplicação de Nosso Senhor dos Passos do Rio Preto” que, àquela época, já tinha por padroeiro o Senhor dos Passos.

Entretanto, obtivemos outros registros nesse sentido em processos de inventários pesquisados no Arquivo Morto da comarca de Rio Preto, bem como nos registros paroquiais de Rio Preto e também de Barbacena, todos eles fontes primárias e fidedignas, que também confirmam a existência dessa primeira igreja de Rio Preto.

Em Barbacena, consta que se casaram na Ermida de Rio Preto, em 1801, Antônio Carlos Vieira e Ângela Rosa. E que "aos 26 de janeiro de 1807 anos, na Ermida do Senhor dos Passos do Rio Preto, filial desta Matriz de Barbacena, o Padre José Luiz Correia, de licença minha baptizou e pôs os santos óleos a Antonio, innocente, filho natural de Theodora Ferreira, índia. Foram padrinhos Antônio José de Freitas e Inez Índia". 

Registros Paroquiais de Barbacena (documentos gentilmente cedidos pelo doutor Marcos Paulo de Souza Miranda, do IHGMG).

Também aos 26 de janeiro de 1807, José Furtado de Figueiredo, o primeiro filho do Alferes e Escrivão do Registro do Rio Preto, João Furtado de Figueiredo, foi batizado na “Ermida do Senhor dos Passos - Rio Preto - MG – Brasil”. E, em 30 de novembro de 1811, Ana Vitória do Nascimento, filha do tenente-coronel Joaquim Gomes de Oliveira Lima e de Maria Eugênia da Costa, também foi “batizada na Ermida do Senhor dos Passos do Rio Preto, filial da matriz de Barbacena”.

Escadaria de acesso ao Cemitério Senhor dos Passos, Rio Preto/MG.
Foto: Livro Trabalhos em pedra e ofício da cantaria, de Ricardo Cristofaro.

Marco Zero

Mais do que isso, por meio desses novos documentos podemos, inclusive, saber a localização exata da capela, uma vez que alguns inventariados foram sepultados dentro dessa igreja. Portanto, a localização de suas respectivas sepulturas no atual cemitério é, na verdade, a indicação do lugar onde essa capela existiu, e também o Marco Zero da cidade de Rio Preto.

Consta que, em 04 de janeiro de 1830, Anastácia Adriana de Jesus, esposa do Alferes João Alves Garcia, foi “sepultada dentro da Ermida do Senhor dos Passos do Rio Preto”. Vê-se que, nessa época, ainda era chamada Ermida, ou seja, pequena capela situada num lugar ermo.

É que os restos mortais daqueles moradores que pertenciam à nobreza rural e/ou burguesia urbana de Rio Preto à época, por costume, eram enterrados dentro da única igreja existente na incipiente povoação. Nesse sentido, felizmente logramos êxito em encontrar durante anos de intensas pesquisas os seguintes registros de sepultamentos ocorridos dentro da Ermida, além da já citada Anastácia Adriana de Jesus: Bernardina da Silva Barreto (12/07/1841), João da Silva Barreto (01/10/1841), Joaquim Gomes de Oliveira Lima (03/02/1842) e Delfina Lúcia de Jesus (23/01/1845).

A seguir, o mesmo José Furtado de Figueiredo, que nela fora batizado em janeiro de 1807, tornou-se portador do registro mais antigo da existência dessa construção como Matriz: “Ele faleceu em 6 julho 1847 em Rio Preto - MG - Brasil e foi sepultado em Dentro da Matriz velha de Nosso Senhor dos Passos - Rio Preto - MG – Brasil”.

Muro de alvenaria de pedra do Cemitério Senhor dos Passos, Rio Preto/MG.
Foto: Livro Trabalhos em pedra e ofício da cantaria, de Ricardo Cristofaro.

Morro dos Beatos

Essa Ermida de Rio Preto de que comprovamos a existência, constitui exemplar de construção religiosa de natureza rural, erguida pelos fundadores de arraiais do século 18 no território de Minas Gerais.

Com o aumento do fluxo de viajantes nesse local de passagem, muitas e maiores tropas passaram a circular por essas paragens. Eles carregavam oratórios de santos de suas devoções e, como de costume, adentravam as capelas existentes pelo caminho a fim de descansarem e rezar. Foi assim que surgiu o nome de Morro dos Beatos para designar o lugar onde a primitiva capela fora erigida.  

Certamente a edificação recebeu melhorias ao longo dos anos, como novas paredes construídas em adobe e estrutura autônoma de madeira. E, no entorno dessa Ermida, poucas e simples casas foram sendo erguidas. A construção de cidades nos altos de morro, naquela época, não seria apenas defesa contra índios e sim atendendo imperativo de fuga da malária.  

Além da moradia habitual, cada proprietário rural queria ter perto do templo uma casa onde a família pudesse descansar da longa caminhada a que era obrigada para assistir ao serviço divino, receber amigos ou tratar de negócios no único dia em que se ajuntavam os moradores. Os mercadores, taberneiros, operários, procuraram acercar-se do lugar onde se reuniam os sitiantes e assim nasceu a maioria das povoações.

O costume de morar a maior parte do ano em fazendas e sítios, distante dos lugares habitados, dominava em todo o Brasil colônia. Mas já nas primeiras décadas dos setecentos, possivelmente haviam sido construídas essas pioneiras casas no entorno da Ermida do Senhor dos Passos, no Morro dos Beatos. Certamente eram poucas, simples e espalhadas umas das outras. Nascia, assim, a atual cidade de Rio Preto.

Sepultura do início do séc. 19, Cemitério
Senhor dos Passos de Rio Preto/MG.
Foto: Rodrigo Magalhães

Pedra Fundamental

Há alguns anos um fato novo nos revelou que essa singela capela já existia em 1728, uma vez que nesse ano um homem branco foi enterrado no seu adro, como era de costume naquela época, sendo que não existiam locais destinados especificamente para servir de cemitério.

No dia quinze de julho de 2016 os funcionários do cemitério preparavam uma cova no local, quando por acaso encontraram uma grande pedra enterrada. Constataram que se tratava da parte frontal da tampa de uma sepultura de um homem branco. Eram duas pedras talhadas bem espessas (aproximadamente 30 cm). Mediam cerca de 1,20 m de comprimento por 0,80 m de largura.

Uma encostada na outra, ambas deitadas, formavam a tampa do caixão da época. Apoiavam-se em cima de um retângulo formado por quatro pedras, também grandes, embora apresentando-se de maneira mais bruta, menos talhadas que as da tampa. Encontravam-se dispostas (“em pé”) no chão, a fim de formarem o formato de uma sepultura.

Sepultura do final do séc. 18, Cemitério
Senhor dos Passos de Rio Preto/MG.
Foto: Rodrigo Magalhães

Igreja-cemitério

Quando não se enterrava o ente querido na própria propriedade rural, fazia-se o seu sepultamento dentro ou no entorno da igreja mais próxima. Por isso mesmo a palavra cemitério, em sua origem latina, designava a parte exterior da igreja (adro), onde se enterravam os católicos.

Dentro da igreja eram sepultados somente aqueles que faziam parte da nobreza rural ou da burguesia urbana. Acreditava-se que, quanto mais a pessoa contribuía para a caridade, mais perto do altar ela seria enterrada e, assim, o morto tinha a sua alma protegida pelos santos, anjos e, sobretudo, por Deus.

As antigas sepulturas de pedras foram encontradas à frente do Cruzeiro, nas extremidades da entrada do referido cemitério (ou seja, no adro da antiga igreja que ali existiu). Foi lá que enterraram os restos mortais daquele que provavelmente foi um dos primeiros habitantes da região, em 1728, enquanto Rio Preto nascia.

Também nos arquivos paroquiais pesquisamos e encontramos interessantes registros que, além de ratificarem a antiguidade da capela e do padroeiro da cidade, ainda confirmam a criação do cemitério.

Há um documento datado de 15 de maio de 1830, em que o frei Henrique D’ Anunciação Got, o primeiro padre nomeado para servir em Rio Preto, escreve ao Provedor das Capelas da região implorando licença para edificarem uma nova capela com invocação de Nosso Senhor dos Passos, pois “a que existe está em ruínas”.

O lugar não é dos mais decentes, por ser de terra areenta, com pingos d’água que a faz lamaçal em dias de chuva, em dias de sol a enxuga... Porém os impetrantes imploram aquele mesmo lugar, onde existe a arruinada, por dois motivos: um pela antiguidade e outro por ser ali aonde existem os corpos de seus parentes.

(...) Outrossim, outros impetrantes e moradores mandaram fazer uma nova imagem de Nosso Senhor dos Passos para colocarem naquele mesmo lugar da antiga que jamais dali sairá. Este é o parecer de pessoas com quem comuniquei para conhecer suas deliberações, e pela maior parte é a vontade dos moradores.

Pouco a pouco, esse conceito de igreja-cemitério como coisa única foi se modificando, mas somente na segunda metade dos oitocentos esses dois conceitos passaram a significar construções distintas. Assim, além de guardar muitos restos mortais do início dos anos setecentos, quando ainda era igreja-cemitério, fato que, por si só, resgata a história de parte significativa do Vale do Rio Preto, o cemitério Senhor dos Passos figura como um dos mais antigos da região.

Isso porque, como a construção de cemitérios públicos iniciou-se apenas em meados do século 19, e era uma inovação urbana recente, essa carta acima reveladora de que o espaço destinado ao cemitério em Rio Preto fora desvinculado da antiga igreja que lá existia em maio de 1830, situa o Senhor dos Passos como um dos cemitérios mais antigos de que temos registro.

Para se ter uma noção dessa antiguidade, o espaço mais antigo da cidade de São Paulo destinado especificamente ao sepultamento dos mortos é o cemitério de Parelheiros, que foi fundado em 1829, em terreno doado pelo próprio Imperador D. Pedro I, ativista dos cemitérios a céu aberto, em uma de suas passagens à região. Foi D. Pedro I, inclusive, quem promulgou posteriormente uma lei que bania os enterros dentro das Igrejas.

Os últimos registros da Capela

De acordo com os relatos de um ilustre convidado para a inauguração da Matriz de Nosso Senhor dos Passos de Rio Preto, em 26 de setembro de 1860, a Matriz Velha ainda existia. Foi de lá que partiu uma concorrida procissão com a antiga imagem de Nosso Senhor dos Passos, que nessa ocasião foi levada para o imponente e suntuoso novo templo.

Conta-se que, ainda no século 19, aproveitando-se de um desmoronamento de terras anteriormente ocorrido na parte alta do morro em que à frente se situava a antiga capela, foram construídas muralhas de pedras no entorno do local, onde se realizou um aterro e formou-se um platô, dando ao cemitério Senhor dos Passos a aparência atual. Com isso, a primitiva capela desapareceu sem deixar vestígios, e aquelas sepulturas mais antigas, restaram todas soterradas a uma profundidade que varia de 1,60 a 1,80 metros.

Ao examinar todos esses temas (Ermida, Morro dos Beatos, Igreja-cemitério), procuramos preencher um vazio historiográfico. Ao longo de quase trezentos anos, esses bens sumiram do mapa sem deixar vestígios, como se jamais tivessem existido. Suas histórias, até então pouco conhecidas, não constam dos registros oficiais, dos mapas territoriais e dos roteiros turísticos.

Mas, como História é construção, todos esses fatos e documentos novos descobertos, reveladores do exato local a partir do qual a cidade nasceu, merecem receber uma atenção especial por parte da Igreja Católica, proprietária do cemitério Senhor dos Passos, assim como da administração municipal. Quem sabe a edificação de um pequeno monumento – o Marco Zero, a fim de marcar o ponto de origem da cidade?!

Fontes: 

* DESCOBERTO DA MANTIQUEIRA - O Sertão Prohibido do Rio Preto, de Rodrigo Magalhães. Interagir Editora: 2017;

* Arquivo Morto da Comarca de Rio Preto/MG;

* Registros Paroquiais diversos.

* Rodrigo Magalhães, pesquisador e historiador riopretano!





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