Blog Rio Preto Noutros Tempos - por Rodrigo Magalhães*
A história às vezes é triste, mas é a nossa história. Corria algum dia de 1884 quando o homem de 73 anos que estava atrás das grades na cadeia de Ouro Preto, onde hoje funciona o Museu da Inconfidência, fechou os olhos para sempre. Seu último suspiro levou consigo as lembranças das 87 vidas que ele executou, a mando de autoridades do Brasil Império (1822-1889), em forcas espalhadas por 29 cidades de Minas Gerais e em duas do Rio de Janeiro. Essa foi a saga do negro Fortunato José, o escravo que virou um dos principais carrascos do país.[1]
A Pena Capital
A pena de morte por aqui funcionou desde o Brasil colonial até o fim do império. Também conhecida como pena capital, ela era uma forma de “punição” utilizada com previsão legal desde a Constituição brasileira de 1824. Durante o Brasil Império foram muitas sentenças judiciais condenatórias à morte, mas o enforcamento em praça pública, de fato, por ser medida extrema, aconteceu apenas em algumas vilas e cidades brasileiras.
A materialização da pena capital era monstruosamente consumada através do sistema de forca. Normalmente recorria-se a um carpinteiro local, entendido do ofício, que selecionando a melhor madeira, erigia o terrível patíbulo. O preparo da corda ficava por conta do executor.
Antes do enforcamento, porém, era costume percorrer-se com o criminoso em uma espécie de tumba ou caixão pela localidade até o cadafalso, para demonstrar a ação do Estado em reprimir o crime de que era acusado e também para produzir o medo junto aos moradores locais.
Apesar de parte da população, horrorizada, se opor à execução por modos indiretos, conforme alguns relatos existentes, o mais comum era uma multidão se dirigir ao local do enforcamento, como se fosse presenciar um espetáculo. Por esse motivo, sempre havia um padre ao lado do cadafalso, inclusive, não apenas para encomendar a vítima, mas também para pronunciar discursos calorosos, que empolgavam os espectadores.
Assim funcionou até o fim do Império do Brasil, período em que os réus ainda eram condenados à morte, apesar do fato de o imperador Dom Pedro II haver comutado todas as sentenças de morte a partir de 1876, tanto para homens livres quanto para escravos. No entanto, a pena de morte só foi totalmente abolida por crimes comuns após a proclamação da República em 15 de novembro de 1889.
A última execução realizada pelo Brasil foi do escravo Francisco, em Pilar, em Alagoas, em 28 de abril de 1876; a última execução de um homem livre foi, segundo os registros oficiais, de José Pereira de Sousa, em Santa Luzia (atual Luziânia), em Goiás, enforcado em 30 de outubro de 1861; por fim, a última execução de uma mulher, até onde pode ser estabelecida, foram das escravas Peregrina e Rosa em Sabará, Minas Gerais, executadas em 14 de abril de 1858. O carrasco era o escravo Fortunato José.
O Carrasco Fortunato
Fortunato nasceu num lugarejo que hoje é a cidade de Lavras, no Sul do estado de Minas Gerais. Aos 22 anos, viciado em bebida e jogatina, foi advertido por dona Custódia, a viúva do fazendeiro João de Paiva, dono da propriedade onde o então jovem veio ao mundo. Irritado com a repreensão, tirou a vida da senhora com uma porretada na cabeça. O crime ganhou repercussão e o rapaz foi condenado à morte. Sua vida seria ceifada na forca.
Por ironia, o algoz que deveria cumprir a ordem havia morrido. E as autoridades fizeram uma proposta a Fortunato: sua pena seria comutada para a de prisão perpétua em troca de ele virar “o dono” da forca. E foi assim que o então jovem, ávido por álcool, começou a percorrer o estado para ceifar a vida dos condenados.
O carrasco tinha a expectativa de um dia receber o perdão do governo e se tornar um homem livre. Sua primeira execução ocorreu no Natal de 1833. Tirou a vida de um escravo. Na mesma data, enforcou o segundo. Na lista de mortos, há negros e brancos, homens e mulheres.[2]
“Era um homem jovial, o verdadeiro tipo desses bons tropeiros dos sertões de Minas que, à noite, nos pousos, divertem os camaradas rasgando uma chorada chula na viola, enquanto, ao longe, pasta a boiada. Quem não conhecesse a terrível história daquele homem, ao vê-lo risonho, de bentinhos e patuás ao peito, sempre a falar em Deus e Nossa Senhora, estaria longe de julgar que era ele o célebre carrasco, terror da província de Minas Gerais.
O crime não deixara naquele rosto as estrias do remorso. O sangue que ele derramava, por conta da justiça, não lhe produzia no espírito impressão alguma. Fizera-se carrasco como quem se faz sapateiro. Enforcar um homem era, para ele, como se deitasse umas tombas* (*remendasse sapatos). Chamava-se Fortunato e foi o último carrasco que tivemos. Usava de uma frase especial para dizer que havia justiçado um criminoso: ‘- Mandei-o embora’.
A vida, para ele, era coisa de somenos. E, se o quisessem ver alegre, era dizer que preparasse para ir enforcar um réu. Nas vésperas da execução, mostrava-se Fortunato de uma expansibilidade extraordinária. Ria, falava consigo mesmo, gesticulava e punha-se até a cantarolar. Para o criminoso, a quem tinha de mandar embora, era ele de uma ternura quase paternal. Tinha, então, extremos de delicadeza e, falando-lhe, uma doçura verdadeiramente feminil na voz.
No momento, porém, em que deitava a corda ao pescoço do miserável, dilatavam-se-lhe os olhos e brincava-lhe no rosto uma alegria feroz. Os gestos eram então sacudidos e nervosos. Rápido como um relâmpago, cumpria o seu degradante e infame dever, recuperando, logo depois, a calma e a tranquilidade de um justo.
Dormia aquele homem como pode dormir quem nunca teve um mau pensamento, nem praticou uma ação indigna. Tinha amor ao ofício e exercia-o com prazer. Era um tipo digno de estudo, o carrasco Fortunato; e, graças à obsequiosidade de pessoa que o conheceu, podemos hoje oferecer aos leitores alguns dados sobre a vida desse sinistro personagem, que figurou em tantas tragédias judiciárias.” - escreveu o renomado jornalista José Ferreira de Araújo para a “Gazeta de Notícias”, um jornal do Rio de Janeiro, em 02.11.1889, seis anos depois do falecimento de Fortunato.
Nos registros das viagens autorizados a esse temível executor para realizar o seu “serviço”, constam dois enforcamentos praticados por ele na cidade de Rio Preto, sita na zona da mata mineira, bem na divisa com o Estado do Rio de Janeiro. “A seis de maio de 1853, seguiu para Rio Preto, a fim de executar os réus Marcelino Crioulo e Antônio Malvadão, assassinos de seu senhor, Luiz José de Paula...”.[3]
Esses enforcamentos provavelmente aconteceram em frente à Casa de Câmara e Cadeia daquele período, que funcionava em um imóvel existente na extremidade do Paredão Davi Campista (ao lado da Ladeira Dr. Afonso Portugal), local onde se fincara o Pelourinho em 1844, defronte à Praça Barão de Santa Clara e nas proximidades da igreja Matriz, bem no centro da pacata cidade.
Essa informação aparece também no livro "Efemérides Mineiras", que confirma a pena capital praticada em Rio Preto e ratifica que foi consumada pelo escravo Fortunato José.
No Rio de Janeiro
De tanto usar a corda, Fortunato foi aprimorando suas habilidades e tornou-se o maior perito da província na arte de enforcar. Consta que este carrasco teria executado enforcamentos até mesmo na então província do Rio de Janeiro. Um deles teria acontecido em Barra Mansa, por volta de 1840, e que o condenado era uma pessoa escravizada. A forca teria sido erigida no local onde funcionou uma grande fábrica da cidade (Nestlé).[4]
Em janeiro de 1873, na província do Rio de Janeiro, ocorreram dois bárbaros assassinatos, um logo após o outro. O primeiro, no dia 8, nas cercanias da vila de Campos dos Goitacazes, do fazendeiro José Joaquim de Almeida Pinto. O segundo, no dia 9, de outro fazendeiro, José Antônio Barroso de Siqueira, na fazenda Poço d’Anta, da freguesia de Santo Antônio de Guarulhos. Ambos lugares situavam-se onde é atual cidade de Campos.
O justiçamento de criminosos desse nível estava a demandar um profissional à altura e, assim, convocaram o famoso Fortunato para realizar o serviço. Porém, quando o carrasco já estava deslocando-se para o Rio de Janeiro, o deputado Baptista Pinto deparou-se com ele e sua guarda no caminho. O político, prevendo as barbaridades que estavam por acontecer, não se conteve e, imediatamente, manifestou-se na reunião da assembleia provincial em Ouro Preto, para a qual havia sido convocado. Lá, fez o seguinte pronunciamento: “Se a província do Rio de Janeiro tinha criminosos a executar, lá mesmo é que devia-se procurar um algoz. Ir de Minas o algoz para fazer essas execuções parece ser um indício de que somos um povo tão mau que até temos carrasco para fornecer a outras províncias.”[5]
A intervenção do deputado não surtiu efeito e os enforcamentos se consumaram. Sete foram executados, em outubro de 1873: o escravos Henrique, José e Benedito, pela morte do fazendeiro Almeida Pinto; e os escravos Antônio, Agostinho, Ciro e Amaro, pela morte do fazendeiro Barroso Siqueira. E a notícia dessa empreitada saiu num jornal da época, acrescentado detalhes da sua ida ao Rio de Janeiro: “Trazia a camisa aberta no peito, quando passou pela estação de Paraíbuna*, deixando ver rosário de contas e bentinhos. Nas estações conversava com alguns curiosos e desabusados. ‘Ia a Campos mandar embora (era o seu termo favorito para exprimir que ia enforcar) a alguns parceiros!’ Ia acorrentado.”[6]
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| Casa de Câmara e Cadeia de Ouro Preto. |
Morte do Algoz
E de tanto chamarem-no de algoz, a palavra foi incorporada como um adendo à sua pessoa. Desta forma, Fortunato José se tornou o mais famoso e temido executor da época no país, e passou a ser conhecido pela alcunha de "Fortunato Algoz".
Em 1866, quando contava seus 55 anos de idade, dirigira um pedido ao presidente da província que, ao fazer seu despacho, o identificou com seu novo sobrenome: “Dia 27 – Fortunato Algoz, indeferido.”[7]
Além dessa fama indesejada, habituara-se às dores do mundo, e também com as suas próprias. Até mesmo as que lhe provocavam o reumatismo, que o atacara na velhice, embora fossem terríveis na gelada e úmida cadeia de Ouro Preto.
A última execução do carrasco ocorreu em 1874. No total, ele foi o executor de 87 mortes por enforcamento em Minas Gerais e no Rio de Janeiro, entre 1833 e 1874. Mesmo assim, Fortunato não obteve o sonhado perdão pela morte de dona Custódia. Passou os últimos dez anos de sua vida na cela do imponente prédio da cadeia de Ouro Preto, onde o algoz foi registrado, já enfraquecido, numa cama na sua cela.
A fama de Fortunato – embora triste – foi tamanha, que ele foi fotografado numa época em que poucas personalidades tiveram a imagem registrada por uma câmera. E assim, encarcerado e desprovido de sua real identidade civil, continuou até o fim dos seus dias, falecendo em 1884.[1] Estado de Minas Gerais, Seção Nossa História, postado em 26/09/2015.
[2] Idem.
[3] NASCIDO PARA MATAR. Sumidouro’s Blog, postado em 01/07/2014.
[4] Livro Memória Barramansense.
[5] NASCIDO PARA MATAR. Sumidouro’s Blog, postado em 01/07/2014.
[6] FORTUNATO ALGOZ, Sumidoiro’s Blogs, postado em 01/05/2016.
[7] “Diario de Minas”, 28.06.1866.
Rodrigo Magalhães, pesquisador e historiador riopretano.






