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terça-feira, 26 de janeiro de 2021

RIO PRETO: MUNICÍPIO DE INGRESSO DO CAFEEIRO EM MINAS GERAIS!

Blog Rio Preto Noutros Tempos - por Rodrigo Magalhães*

Escravos na colheita de café (1882). Fotografia de Marc Ferrez.

O elemento mais icônico do Vale do Rio Preto é o café. Ele está presente na maioria dos brasões dos municípios situados nessa região, como no de Rio Preto, território por onde penetrou o café no estado de Minas Gerais, no final do século 18.

A famosa rubiácea foi a principal responsável pela colocação da região em posição destacada na história imperial brasileira, época em que o seu território serviu de palco para extraordinária produção cafeeira, considerada uma das maiores do país e do mundo. Por isso recebeu o nome de Vale do Café!


O primeiro pé de café das Minas Gerais

                Devido à proximidade ao território fluminense do município de Resende, onde o arbusto penetrou ainda nos anos 1700 e que também é banhado pelo rio Preto, o solo de Rio Preto entrou para a história nacional como aquele que abrigou a pioneira muda do hoje tradicional e famoso café em Minas Gerais.

 “(...) No Rincão do Rio Preto é que se plantou o primeiro pé de café, na então Província de Minas Geraes” – registrou o pesquisador José Marinho de Araújo, membro do Instituto Histórico e Geográfico de Minas Gerais. Essa informação de incontestável valor histórico também é citada por diversos outros autores como Daniel de Carvalho, Basílio de Magalhães e, especialmente, Hildebrando de Magalhães, além de publicações diversas de órgãos mineiros e nacionais.

Hildebrando de Magalhães nasceu em Campinas/SP, em 1902. Era filho do historiador, jornalista e político mineiro Basílio de Magalhães, que foi professor de História em São Paulo e, depois, no Rio de Janeiro, além de Senador por Minas em 1922. Basílio estudava com afinco a História do café em Minas Gerais, e provavelmente, foi o primeiro a apontar o município de Rio Preto como a porta de entrada do café em solo mineiro.

Seguindo os passos do pai, Hildebrando logo envidou seus melhores esforços literários na questão do café. Publicou um extenso livro chamado “História do café”, bem como outro com o nome “Contribuição para a história do café”. Escreveu, ainda, diversos artigos sobre o tema nos principais jornais de Minas Gerais, razão pela qual foi o escolhido pelo doutor Assis Chateau-briand para organizar uma seção para “O Jornal”. Nasceu assim o livro intitulado “O CAFÉ EM MINAS GERAES”, publicado em 1933, no qual o renomado autor afirma que “(...) si de Resende foi que se expandiu para S. Paulo e Minas, - nesta, pela posição topográfica do citado município fluminense, deve ter penetrado pelo rincão de Rio-Preto...

Segundo Hildebrando de Magalhães, “data, sem dúvida, de fins do século XVIII o ingresso do cafeeiro em Minas”. Acrescenta, ainda, que “por 1851, ao que se consignou em fonte oficial, as lavouras do café estavam normalmente estabelecidas, na zona da Mata, nos municípios de Presídio do Rio-Preto, Santo Antônio do Parahybuna, Barbacena e Mar-de- Espanha; e haviam apenas começado a desenvolver-se em Leopoldina, Ubá e Muriahé”.

Daniel de Carvalho (1887-1966), por sua vez, foi outra figura destacada que também apontou o solo riopretano como o pioneiro cafeeiro em Minas Gerais. Ele foi professor de História, deputado federal e até mesmo Ministro da Agricultura. Escreveu diversos artigos em jornais e livros, e era membro do Instituto Histórico e Geográfico de Minas Gerais.

O início

                O registro mais antigo de uma considerável plantação de café na região foi feito pelo francês Saint-Hilaire, e data de fevereiro de 1822. Segundo ele, dois franceses possuíam uma venda na Aldeia das Cobras (próximo à Rio Bonito, no município de Valença/RJ), onde há muito tempo residiam. Conta-nos que esses dois franceses “haviam feito, pelas próprias mãos, considerável plantação de café, nas terras do desembargador Loureiro (...) e temendo alguma trapaça, venderam as plantações por duzentos mil réis, antes que produzissem. E asseguram que neste anno (1822) o comprador ou o próprio Loureiro, que ficou em seu logar, lucrarão dois mil cruzados”.

           Acredita-se que foi graças às observações de um pároco, na década de 1830, que os abastados fazendeiros do Vale do Rio Preto decidiram investir suas respectivas fortunas para custear o plantio do café em larga escala nos municípios dessa região, como Valença e Rio das Flores, no estado do Rio de Janeiro, e Rio Preto, Santa Bárbara do Monte Verde, Santa Rita de Jacutinga e Belmiro Braga, em Minas Gerais.

Seu nome era João Joaquim Ferreira de Aguiar. Em 1832, ele participou da fundação da Sociedade Defensora da Liberdade e Independência Nacional da Vila de Valença, que reunia os grandes proprietários rurais do município. Essa sociedade criou um periódico – O Valenciano, veículo de informação através do qual o Padre Aguiar passou a publicar seus estudos defendendo a viabilidade técnica e econômica do plantio do café. Em 1836, ele publicou um Manual de Plantação, Cultura e Colheita.

           Padre Aguiar era um profundo conhecedor de agronomia. Ele era sócio da Sociedade Auxiliadora da Indústria Nacional (SIAN), uma instituição fundada na década de 1830 dedicada ao estudo de todos os aspectos inovadores que pudessem impulsionar a agricultura no Brasil. Foi por influência desse padre que entre as décadas de 1830 e 1840 vários fazendeiros do Vale do Rio Preto se associaram à SIAN, como o Visconde de Baependy, que por várias ocasiões chegou a fazer parte da sua diretoria, inclusive.

            Sabe-se que foi o Visconde de Baependy o outro cidadão responsável pela entrada em cena do café na região. Ele funcionou como uma espécie de ligadura entre as demais famílias de grandes proprietários rurais para que os investimentos no plantio do café se tornassem atrativos e rentáveis. Pode-se dizer que a parceria entre o Padre Aguiar e o Visconde de Baependy foi fator decisivo para colocar o café como primeiro lugar na produção de larga escala na região, nas décadas que sucederam a sua escolha como fruto padrão para o plantio no fértil e vasto território do Vale do Rio Preto.

O Brasil é o café e o café é o Vale

            Registrou-se, então, uma extraordinária produtividade de café nos vales dos rios Preto e Paraíba do Sul.  O Brasil é o café e o café é o Vale", era uma frase corriqueira no país em meados do século XIX.

Estima-se que na década de 1860 essa região produzia 75% do café consumido no mundo, e assim garantia ao Brasil a condição de líder mundial na produção e exportação de café. Somente Valença e Vassouras, por exemplo, chegaram a produzir 100 arrobas de café beneficiado por 1.000 pés, números expressivos que os colocou entre os maiores municípios cafeeiros mundiais do século XIX.

Candido Portinari

Os Barões do Café

            O Ciclo do Café foi um período da história do Brasil durante o qual a produção cafeeira teve grande importância para o desenvolvimento econômico do país. Ele também trouxe muita riqueza para os grandes proprietários rurais de Rio Preto. Grandes e suntuosas casas sede de fazenda foram erigidas no município. Na então vila, imponentes sobrados e palacetes passaram a fazer parte da paisagem, especialmente na Rua Direita (atual rua Dr. Esperidião), o logradouro mais importante da localidade. Era ali que os mais abastados fazendeiros possuíam as suas respectivas “Casa da Cidade”.

              Surgiram também os títulos nobiliárquicos. Os chamados “Barões do Café”. No município de Rio Preto, entre esses nobres, destacavam-se aqueles ligados às duas principais fazendas da época: Santa Clara e São José. Viscondessa do Monte Verde e o Barão de Santa Clara, de um lado, e Barão de São José e Barão de Souza Lima, por outro, foram os sucessivos proprietários dessas duas grandes produtoras de café de Rio Preto que, devido a grande importância socioeconômica para o município, os logradouros que conduziam às suas sedes foram denominados, respectivamente, Rua Santa Clara e Rua São José.

O Brasil é o café e o café é o negro

              Entre 1830 e 1850, a região se desenvolveu graças a esses barões do café. Mas é fato que eles fizeram fortuna às custas de trabalho escravo. Durante boa parte do ciclo do café, a mão de obra utilizada nas lavouras e no transporte foi a dos escravizados de origem africana.

           Estima-se que 4,9 milhões de africanos foram escravizados e trazidos para o Brasil. Essas pessoas tiveram suas famílias desmembradas, seus nomes e identidade quase que completamente apagados.

Acredita-se que eles representavam 2/3 da população local à época. Por isso, é preciso sempre lembrar que o ciclo do café está diretamente ligado a um dos períodos mais terríveis de nossa história: a escravidão.

Candido Portinari

Símbolos do ciclo do café

               Além das grandiloquentes casas sede dessas fazendas do ciclo do café que ainda resistem ao tempo, bem como algumas edificações existentes na cidade, o maior símbolo dessa fase de apogeu financeiro durante o período imperial é, sem dúvida, a majestosa Matriz de Nosso Senhor dos Passos de Rio Preto.

    Ricamente finalizada pelo artista catalão Villaronga, com recursos próprios dos abastados proprietários da fazenda Santa Clara – Viscondessa do Monte Verde e Barão de Santa Clara e mão de obra dos africanos escravizados, os personagens mais símbólicos do ciclo do café, esse templo até os dias atuais é o principal cartão postal da cidade de Rio Preto!

Matriz de Nosso Senhor dos Passos de Rio Preto/MG.


Rodrigo Magalhães é pesquisador e historiador riopretano!


EM TEMPO: Recentemente obtive êxito em adquirir o livro intitulado O café em Minas Geraes, que há muitos anos procurava, por ser a obra que serve de subsídio para fundamentar o apontamento do solo riopretano como o pioneiro em receber o cafeeiro em Minas. Assim, sugiro às autoridades municipais a explorarem turisticamente uma constatação histórica de tamanha importância. Quem sabe a colocação de uma placa nas entradas da cidade com os seguintes dizeres: Bem-vindo à Rio Preto – o município onde foi plantado o primeiro pé de café em Minas Gerais!

FONTES:

* O café em Minas Geraes, de Hildebrando de Magalhães;

*Segunda Viagem do Rio de Janeiro a Minas Gerais e São Paulo (1822), de August Saint-Hilaire;

*A Introdução do café no Vale do Paraíba do Sul (Coleção Vale do Café), de Antônio Carlos da Silva, Gislene Braz e Iam Senna;

*Descoberto da Mantiqueira – O Sertão Prohibido do Rio Preto, de Rodrigo Magalhães;

*Rio Preto: Estado de Minas – Propaganda do Brasil por municípios, de Symphronio de Magalhães;

*Rio Preto: Resumo Histórico, de José Marinho de Araújo.  

terça-feira, 12 de janeiro de 2021

CEMITÉRIO SENHOR DOS PASSOS: MARCO ZERO DA CIDADE DE RIO PRETO!

 

Muro de alvenaria de pedra do Cemitério Senhor dos Passos de Rio Preto/MG.
Foto: Livro Trabalhos em pedra e ofício da cantaria, de Ricardo Cristofaro.

Blog Rio Preto Noutros Tempos – por Rodrigo Magalhães*

Documentos encontrados nos últimos anos confirmam a existência da Ermida de Senhor dos Passos, também chamada de Matriz Velha – a primeira igreja de Rio Preto e, possivelmente, a pioneira edificação da cidade e ponto de origem da povoação. Tratava-se de uma singela capela, que se situava bem no centro do atual cemitério de Nosso Senhor dos Passos, no Morro dos Pintos, que outrora era denominado justamente de Morro dos Beatos, local que pode ser considerado o Marco Zero da cidade de Rio Preto!

Ermida de Santa Efigênia, no município de Sabará/MG (séc. 18).
Foto: IEPHA
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Ermida

            Essa capela foi erigida estrategicamente em terreno elevado, situado na antiga rota bandeirante (e depois, rota do contrabando do ouro). Ela servia de uma espécie de marcação a fim de guiar os primeiros viajantes que no início dos anos 1700 já haviam adentrado a chamada Passagem do Rio Preto rumo aos portos do Rio de Janeiro e, em sentido contrário, com destino ao Norte (Goiás).

            Ela foi construída em uma pequena área plana de um terreno montanhoso, onde também foi erguido um antigo e modesto cruzeiro feito de madeira tosca. Tratava-se de uma humilde capela. Simples e pequena, sob a invocação de uma imagem de Nosso Senhor dos Passos, possivelmente trazida da região do rio das Mortes, onde o Senhor dos Passos já era devotado e possuía Irmandade desde o início dos setecentos, sendo que Rio Preto era um território integrante da comarca de Rio das Mortes.

Provavelmente, era sustentada por toscos esteios de madeira, com paredes de palmito e ripas, ligadas por cipó Imbé e emboçadas por ligeiras camadas de barro, com teto formado de ramos de palmeiras, tal como outras capelas construídas nesse período.

O documento mais antigo que atesta a existência dessa Ermida data de 1791. Em 14 de agosto daquele ano, quando Barbacena foi elevada a Vila, uma de suas capelas filiadas era justamente a “do distrito da Aplicação de Nosso Senhor dos Passos do Rio Preto” que, àquela época, já tinha por padroeiro o Senhor dos Passos.

Entretanto, obtivemos outros registros nesse sentido em processos de inventários pesquisados no Arquivo Morto da comarca de Rio Preto, bem como nos registros paroquiais de Rio Preto e também de Barbacena, todos eles fontes primárias e fidedignas, que também confirmam a existência dessa primeira igreja de Rio Preto.

Em Barbacena, consta que se casaram na Ermida de Rio Preto, em 1801, Antônio Carlos Vieira e Ângela Rosa. E que "aos 26 de janeiro de 1807 anos, na Ermida do Senhor dos Passos do Rio Preto, filial desta Matriz de Barbacena, o Padre José Luiz Correia, de licença minha baptizou e pôs os santos óleos a Antonio, innocente, filho natural de Theodora Ferreira, índia. Foram padrinhos Antônio José de Freitas e Inez Índia". 

Registros Paroquiais de Barbacena (documentos gentilmente cedidos pelo doutor Marcos Paulo de Souza Miranda, do IHGMG).

Também aos 26 de janeiro de 1807, José Furtado de Figueiredo, o primeiro filho do Alferes e Escrivão do Registro do Rio Preto, João Furtado de Figueiredo, foi batizado na “Ermida do Senhor dos Passos - Rio Preto - MG – Brasil”. E, em 30 de novembro de 1811, Ana Vitória do Nascimento, filha do tenente-coronel Joaquim Gomes de Oliveira Lima e de Maria Eugênia da Costa, também foi “batizada na Ermida do Senhor dos Passos do Rio Preto, filial da matriz de Barbacena”.

Escadaria de acesso ao Cemitério Senhor dos Passos, Rio Preto/MG.
Foto: Livro Trabalhos em pedra e ofício da cantaria, de Ricardo Cristofaro.

Marco Zero

Mais do que isso, por meio desses novos documentos podemos, inclusive, saber a localização exata da capela, uma vez que alguns inventariados foram sepultados dentro dessa igreja. Portanto, a localização de suas respectivas sepulturas no atual cemitério é, na verdade, a indicação do lugar onde essa capela existiu, e também o Marco Zero da cidade de Rio Preto.

Consta que, em 04 de janeiro de 1830, Anastácia Adriana de Jesus, esposa do Alferes João Alves Garcia, foi “sepultada dentro da Ermida do Senhor dos Passos do Rio Preto”. Vê-se que, nessa época, ainda era chamada Ermida, ou seja, pequena capela situada num lugar ermo.

É que os restos mortais daqueles moradores que pertenciam à nobreza rural e/ou burguesia urbana de Rio Preto à época, por costume, eram enterrados dentro da única igreja existente na incipiente povoação. Nesse sentido, felizmente logramos êxito em encontrar durante anos de intensas pesquisas os seguintes registros de sepultamentos ocorridos dentro da Ermida, além da já citada Anastácia Adriana de Jesus: Bernardina da Silva Barreto (12/07/1841), João da Silva Barreto (01/10/1841), Joaquim Gomes de Oliveira Lima (03/02/1842) e Delfina Lúcia de Jesus (23/01/1845).

A seguir, o mesmo José Furtado de Figueiredo, que nela fora batizado em janeiro de 1807, tornou-se portador do registro mais antigo da existência dessa construção como Matriz: “Ele faleceu em 6 julho 1847 em Rio Preto - MG - Brasil e foi sepultado em Dentro da Matriz velha de Nosso Senhor dos Passos - Rio Preto - MG – Brasil”.

Muro de alvenaria de pedra do Cemitério Senhor dos Passos, Rio Preto/MG.
Foto: Livro Trabalhos em pedra e ofício da cantaria, de Ricardo Cristofaro.

Morro dos Beatos

Essa Ermida de Rio Preto de que comprovamos a existência, constitui exemplar de construção religiosa de natureza rural, erguida pelos fundadores de arraiais do século 18 no território de Minas Gerais.

Com o aumento do fluxo de viajantes nesse local de passagem, muitas e maiores tropas passaram a circular por essas paragens. Eles carregavam oratórios de santos de suas devoções e, como de costume, adentravam as capelas existentes pelo caminho a fim de descansarem e rezar. Foi assim que surgiu o nome de Morro dos Beatos para designar o lugar onde a primitiva capela fora erigida.  

Certamente a edificação recebeu melhorias ao longo dos anos, como novas paredes construídas em adobe e estrutura autônoma de madeira. E, no entorno dessa Ermida, poucas e simples casas foram sendo erguidas. A construção de cidades nos altos de morro, naquela época, não seria apenas defesa contra índios e sim atendendo imperativo de fuga da malária.  

Além da moradia habitual, cada proprietário rural queria ter perto do templo uma casa onde a família pudesse descansar da longa caminhada a que era obrigada para assistir ao serviço divino, receber amigos ou tratar de negócios no único dia em que se ajuntavam os moradores. Os mercadores, taberneiros, operários, procuraram acercar-se do lugar onde se reuniam os sitiantes e assim nasceu a maioria das povoações.

O costume de morar a maior parte do ano em fazendas e sítios, distante dos lugares habitados, dominava em todo o Brasil colônia. Mas já nas primeiras décadas dos setecentos, possivelmente haviam sido construídas essas pioneiras casas no entorno da Ermida do Senhor dos Passos, no Morro dos Beatos. Certamente eram poucas, simples e espalhadas umas das outras. Nascia, assim, a atual cidade de Rio Preto.

Sepultura do início do séc. 19, Cemitério
Senhor dos Passos de Rio Preto/MG.
Foto: Rodrigo Magalhães

Pedra Fundamental

Há alguns anos um fato novo nos revelou que essa singela capela já existia em 1728, uma vez que nesse ano um homem branco foi enterrado no seu adro, como era de costume naquela época, sendo que não existiam locais destinados especificamente para servir de cemitério.

No dia quinze de julho de 2016 os funcionários do cemitério preparavam uma cova no local, quando por acaso encontraram uma grande pedra enterrada. Constataram que se tratava da parte frontal da tampa de uma sepultura de um homem branco. Eram duas pedras talhadas bem espessas (aproximadamente 30 cm). Mediam cerca de 1,20 m de comprimento por 0,80 m de largura.

Uma encostada na outra, ambas deitadas, formavam a tampa do caixão da época. Apoiavam-se em cima de um retângulo formado por quatro pedras, também grandes, embora apresentando-se de maneira mais bruta, menos talhadas que as da tampa. Encontravam-se dispostas (“em pé”) no chão, a fim de formarem o formato de uma sepultura.

Sepultura do final do séc. 18, Cemitério
Senhor dos Passos de Rio Preto/MG.
Foto: Rodrigo Magalhães

Igreja-cemitério

Quando não se enterrava o ente querido na própria propriedade rural, fazia-se o seu sepultamento dentro ou no entorno da igreja mais próxima. Por isso mesmo a palavra cemitério, em sua origem latina, designava a parte exterior da igreja (adro), onde se enterravam os católicos.

Dentro da igreja eram sepultados somente aqueles que faziam parte da nobreza rural ou da burguesia urbana. Acreditava-se que, quanto mais a pessoa contribuía para a caridade, mais perto do altar ela seria enterrada e, assim, o morto tinha a sua alma protegida pelos santos, anjos e, sobretudo, por Deus.

As antigas sepulturas de pedras foram encontradas à frente do Cruzeiro, nas extremidades da entrada do referido cemitério (ou seja, no adro da antiga igreja que ali existiu). Foi lá que enterraram os restos mortais daquele que provavelmente foi um dos primeiros habitantes da região, em 1728, enquanto Rio Preto nascia.

Também nos arquivos paroquiais pesquisamos e encontramos interessantes registros que, além de ratificarem a antiguidade da capela e do padroeiro da cidade, ainda confirmam a criação do cemitério.

Há um documento datado de 15 de maio de 1830, em que o frei Henrique D’ Anunciação Got, o primeiro padre nomeado para servir em Rio Preto, escreve ao Provedor das Capelas da região implorando licença para edificarem uma nova capela com invocação de Nosso Senhor dos Passos, pois “a que existe está em ruínas”.

O lugar não é dos mais decentes, por ser de terra areenta, com pingos d’água que a faz lamaçal em dias de chuva, em dias de sol a enxuga... Porém os impetrantes imploram aquele mesmo lugar, onde existe a arruinada, por dois motivos: um pela antiguidade e outro por ser ali aonde existem os corpos de seus parentes.

(...) Outrossim, outros impetrantes e moradores mandaram fazer uma nova imagem de Nosso Senhor dos Passos para colocarem naquele mesmo lugar da antiga que jamais dali sairá. Este é o parecer de pessoas com quem comuniquei para conhecer suas deliberações, e pela maior parte é a vontade dos moradores.

Pouco a pouco, esse conceito de igreja-cemitério como coisa única foi se modificando, mas somente na segunda metade dos oitocentos esses dois conceitos passaram a significar construções distintas. Assim, além de guardar muitos restos mortais do início dos anos setecentos, quando ainda era igreja-cemitério, fato que, por si só, resgata a história de parte significativa do Vale do Rio Preto, o cemitério Senhor dos Passos figura como um dos mais antigos da região.

Isso porque, como a construção de cemitérios públicos iniciou-se apenas em meados do século 19, e era uma inovação urbana recente, essa carta acima reveladora de que o espaço destinado ao cemitério em Rio Preto fora desvinculado da antiga igreja que lá existia em maio de 1830, situa o Senhor dos Passos como um dos cemitérios mais antigos de que temos registro.

Para se ter uma noção dessa antiguidade, o espaço mais antigo da cidade de São Paulo destinado especificamente ao sepultamento dos mortos é o cemitério de Parelheiros, que foi fundado em 1829, em terreno doado pelo próprio Imperador D. Pedro I, ativista dos cemitérios a céu aberto, em uma de suas passagens à região. Foi D. Pedro I, inclusive, quem promulgou posteriormente uma lei que bania os enterros dentro das Igrejas.

Os últimos registros da Capela

De acordo com os relatos de um ilustre convidado para a inauguração da Matriz de Nosso Senhor dos Passos de Rio Preto, em 26 de setembro de 1860, a Matriz Velha ainda existia. Foi de lá que partiu uma concorrida procissão com a antiga imagem de Nosso Senhor dos Passos, que nessa ocasião foi levada para o imponente e suntuoso novo templo.

Conta-se que, ainda no século 19, aproveitando-se de um desmoronamento de terras anteriormente ocorrido na parte alta do morro em que à frente se situava a antiga capela, foram construídas muralhas de pedras no entorno do local, onde se realizou um aterro e formou-se um platô, dando ao cemitério Senhor dos Passos a aparência atual. Com isso, a primitiva capela desapareceu sem deixar vestígios, e aquelas sepulturas mais antigas, restaram todas soterradas a uma profundidade que varia de 1,60 a 1,80 metros.

Ao examinar todos esses temas (Ermida, Morro dos Beatos, Igreja-cemitério), procuramos preencher um vazio historiográfico. Ao longo de quase trezentos anos, esses bens sumiram do mapa sem deixar vestígios, como se jamais tivessem existido. Suas histórias, até então pouco conhecidas, não constam dos registros oficiais, dos mapas territoriais e dos roteiros turísticos.

Mas, como História é construção, todos esses fatos e documentos novos descobertos, reveladores do exato local a partir do qual a cidade nasceu, merecem receber uma atenção especial por parte da Igreja Católica, proprietária do cemitério Senhor dos Passos, assim como da administração municipal. Quem sabe a edificação de um pequeno monumento – o Marco Zero, a fim de marcar o ponto de origem da cidade?!

Fontes: 

* DESCOBERTO DA MANTIQUEIRA - O Sertão Prohibido do Rio Preto, de Rodrigo Magalhães. Interagir Editora: 2017;

* Arquivo Morto da Comarca de Rio Preto/MG;

* Registros Paroquiais diversos.

* Rodrigo Magalhães, pesquisador e historiador riopretano!





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