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domingo, 8 de janeiro de 2023

A CASA DA MOEDA FALSA DE RIO PRETO (SÉC. XVIII)

 Blog Rio Preto Noutros Tempos – por Rodrigo Magalhães*




Recebi recentemente de um amigo pesquisador um documento de inestimável valor histórico para toda a região do Vale do Rio Preto. Marcos Paulo de Souza Miranda, sócio efetivo do Instituto Histórico e Geográfico de Minas Gerais, localizou nos acervos do Arquivo Público Mineiro uma verdadeira joia para a nossa historiografia. Trata-se de um documento datado de 1804, cujo teor confirma que existiu uma Casa da Moeda Falsa muito antiga em Rio Preto (já existia antes de 1780 - sec. XVIII). Com o título - “INFORMAÇÃO DE SERVIÇO QUE FAZ O INTENDENTE DA VILA DE SÃO JOÃO DEL-REY AO GOVERNADOR, sobre a devassa feita no distrito do Rio Preto, em um sítio onde se encontrou moedas falsas muito antigas, sendo estas recolhidas à Tesouraria Geral”[1] – o registro é um lastro documental (fonte fidedigna) que insere o município de Rio Preto definitivamente no contexto histórico do ciclo do ouro no Brasil!

Casas Clandestinas de Fundição

    Foi no fim do século XVII que se revelou em Minas Gerais a ocorrência de ouro. E Portugal exerceu sobre a exploração do ouro grande controle, criando para esse fim vários mecanismos, como a Intendência de Minas e as Casas de Fundição. A primeira tinha a função de distribuir terras para a exploração do ouro, fiscalizar e cobrar impostos. As Casas de Fundição, por sua vez, eram locais em que todo o ouro encontrado nas minas eram transformados em barras para facilitar a cobrança de impostos durante o ciclo do ouro. 

    Em 1719 foi instituída a nova lei do quinto que determinava a instalação de Casas de Fundição nas Minas Gerais e proibia a circulação de ouro em pó, que era facilmente contrabandeado. Nas Casas de Fundição o ouro seria fundido, transformado em barras, cunhado com o selo real e deduzido a quinta parte correspondente ao imposto. O ouro só poderia circular após passar por todo aquele processo fiscal.

    O município de Rio Preto, sito na zona da mata mineira, foi palco de um curioso episódio relacionado a esse sentimento de rigor tributário em contraponto com a sonegação, que é a instalação de uma casa clandestina de fundição de moedas (ou lingotes circulares de ouro), na segunda metade do século XVIII, também chamada de “Fábrica de Moedas falsas”, que faria o mesmo papel das casas oficiais, contudo a custo menor. Os cunhos provavelmente haviam sido roubados de outras casas de fundição e a moeda ali produzida foi chamada de falsa pelo fato de que o ouro não era fundido ou “quintado” nas Casas de Fundição Reais.

    Em todo o estado de Minas Gerais são raríssimos os documentos (idôneos) que demonstram o funcionamento de Casas de Moedas Falsas, como a que existiu em Rio Preto entre a segunda metade do século XVIII e o início do século XIX. A pioneira e mais famosa dessas casas clandestinas de fundição de ouro ficava no atual município de Moeda. Conhecida atualmente por Casa de Moeda Falsa do Paraopeba ou Fábrica do Paraopeba, é um sítio arqueológico remanescente de uma fundição clandestina de moeda que funcionou durante o auge do ciclo do ouro no século XVIII na antiga Capitania de Minas Gerais. A casa fundia e cunhava moedas com equipamentos roubados de casas de fundições oficiais do Rio de Janeiro e cobrava um "imposto" menor que o quinto do ouro cobrado pela Coroa portuguesa.


Ruínas da Casa de Moeda Falsa do Paraopeba/MG
(Foto de Internet)

    A fábrica era altamente fortificada com armamento bélico, que a mantinha protegida de forasteiros e vizinhos curiosos. Explica a historiadora Luana Martins, através de informação retirada da Revista do Arquivo Público Mineiro, que o trecho mais próximo àquela antiga Fábrica foi chamado de “Fortaleza”, pois, segundo relatos, diante da aproximação dos possíveis “clientes”, eram emitidos sinais com tiros de trabucos.[2]

    A fortificação, além de ser belicamente protegida, localizava-se em posição estratégica, nos contrafortes da vertente ocidental da então chamada Serra do Paraopeba, escondida dos caminhos novos da Estrada Real que passavam pelo outro lado da serra e conduziam o ouro produzido nas principais minas de Vila Rica, Mariana e Sabará e por onde passavam os ouvidores a serviço da Coroa.

    A fábrica funcionava com trabalho de aproximadamente cem homens de diversas origens, inclusive antigos funcionários da administração portuguesa na América, e era comandada por Inácio de Souza Ferreira. Outro fato interessante é um “Regulamento” criado por Ignácio Ferreira, líder do grupo, que descreviam as atividades no cotidiano da casa de fundição e as severas medidas disciplinares que eram impostas a quem ousasse desobedecer. O documento previa pena de morte para quem saísse das instalações da fábrica sem o consentimento.[3]  

    Essa casa de fundição foi desativada ainda no século XVIII e, atualmente, encontra-se em ruínas. Foi essa fabricação clandestina de moeda que deu origem ao atual topônimo da Serra da Moeda, bem como ao município mineiro de Moeda.



Casa da Moeda Falsa de Rio Preto

    Antes do ciclo do ouro, o território que atualmente pertence ao município de Rio Preto já era habitado pelos índios Coroados (denominou-se genericamente Coroados a todos eles, não obstante serem parte de diversas sociedades indígenas, todas linguisticamente vinculadas à família Puri-Coroado) e denominava-se Sertão do Rio Preto. 

    Devido a sua localização estratégica - situado entre as Estradas Reais (‘Caminho Velho’ e ‘Caminho Novo’) que abrigavam postos fiscais de fiscalização e de arrecadação do quinto, essa região foi muito utilizada como rota de contrabando do ouro que saía das minas gerais com destino aos portos do Rio de Janeiro. Por essa razão, em 1755, quando se descobriu que algumas pessoas teriam aberto picadas que cruzavam aqueles sertões e lá habitavam, o governador interino José Antônio Freire de Andrada (2º Conde de Bobadela) publicou um Bando confirmando “os sertões do distrito da Mantiqueira” como 'árias prohibidas'.

    Assim, a escolha do território do atual município de Rio Preto para se instalar uma fábrica clandestina de fundição de ouro não foi ao acaso: além de se situar em uma rota clandestina, cujo percurso entre as minas e os portos era mais curto e livre de fiscalização, a região era declarada oficialmente como área proibida, onde não era permitido povoar e nem mesmo transitar.



    Interessante observar, no entanto, que na segunda metade do século XVIII a mineração já havia entrado em decadência com o esgotamento das jazidas na principal região aurífera de Minas Gerais, onde ficavam as chamadas Vilas do Ouro - Ouro Preto, Mariana, Serro, Caeté, São João del-Rei, Pitangui, Sabará e São José do Rio das Mortes. Por essa razão, podemos supor que a Casa da Moeda Falsa de Rio Preto pode ter sido instalada na primeira metade dos anos 1700. Mas certamente o grande lapso de tempo que a mesma permaneceu em funcionamento se deve ao fato do descobrimento de grande quantidade de ouro no Vale do Rio Preto por volta de 1780, conforme atestam diversos documentos. 

    A região passou a ser chamada então de Descoberto do Rio Preto, e o ouro achado fartamente no leito do rio Preto e em seus afluentes atraiu muitos povoadores, que rapidamente se estabeleceram clandestinamente naquele sertão até então vedado. Por esse motivo, em 1780 o governador de Minas Gerais decidiu abrir a região à mineração e ao povoamento, distribuindo as primeiras sesmarias e datas minerais. Mas os ‘gentios bravios’ que habitavam aquele território há pelo menos 150 anos resistiram, e os detentores dessas posses legais não lograram êxito em se estabelecerem por essas paragens, uma vez que suas fazendas e plantações eram atacadas frequentemente pelos indígenas.

    Como podemos vislumbrar agora, uma exceção foi a Casa de Fundição de Ouro que se instalara em Rio Preto na segunda metade do século XVIII, de forma clandestina, e se manteve em funcionamento na região até 1804, quando finalmente os proprietários e funcionários foram descobertos e presos. Isto porque, demonstrando preocupação com o afluxo populacional na região, em 24 de março de 1801 a Câmara da Vila de São João del-Rei havia proposto a criação de dois distritos no “Sertão e Descoberto do Rio Preto”, para “remediar as desordens que se verificavam na região, catequizar os gentios e aumentar a arrecadação de tributos”.[4]


Ruínas da Casa de Pedra - Rio Preto/MG
Foto: Igor Alecsander

Casa de Pedra

    Os falsificadores de moedas certamente tiveram sucesso nessa empreitada criminosa devido à forte estrutura bélica da casa que erigiram no outrora Sertão Proibido do Rio Preto. Trata-se possivelmente das ruínas conhecidas atualmente como ‘Casa de Pedra’, patrimônio histórico tombado pelo município e consolidada como um dos cartões postais mais icônicos e visitados de Rio Preto.

    Situada nas proximidades de Santo Antônio das Varejas, na zona rural do município de Rio Preto, possui uma estrutura monumental, grande e feita de pedra e alvenaria, seguindo um modelo básico que se manteve ao longo dos séculos para os fortins, de planta quadrangular. Os vestígios remanescentes constituem uma área construída de cerca de 50 m² (9,00 m x 5,55 m); as paredes possuem espessura de 0,80 m; a altura interna varia entre 3,70 e 3,90 m e, na área externa, notam-se paredes com mais de 4,00 m de altura.

    A casa em que possivelmente funcionava a fundição clandestina de ouro em Rio Preto possuía duas grandes janelas frontais que se parecem com duas baterias de artilharia, pois apresentam um afunilamento nas laterais (de dentro para fora); são grandes aberturas verticais, e se parecem com aquelas utilizadas na arquitetura militar como vão de observação, vigia e tiro. Esse detalhe arquitetônico sugere que essas janelas foram construídas para receber artilharia leve, mas também pequenos canhões, dispostos para guarnecer o portão de entrada, permitindo aos vigias, assim, maior visibilidade e dando-lhes mais proteção contra os indígenas, os curiosos e as tropas e patrulhas a serviço da Coroa portuguesa.

    Dentre tantas serventias atribuídas à Casa de Pedra pela tradição oral ao longo dos anos – 'Fortim Bandeirante', 'Casa Forte', 'Fortaleza Militar', etc. – a função de ‘Casa Clandestina de Fundição de Ouro’ já havia sido citada por moradores antigos da localidade, mas sem qualquer lastro documental que amparasse tal possibilidade.





Documento Histórico

    Eis o teor do documento, que se encontra no Arquivo Público Mineiro, em Belo Horizonte, no Fundo “Secretaria de Governo da Capitania”, na Seção Colonial (:

“INFORMAÇÃO DE SERVIÇO QUE FAZ O INTENDENTE[5] DA VILA DE SÃO JOÃO DEL-REY AO GOVERNADOR, sobre a devassa feita no distrito do Rio Preto, em um sítio onde se encontrou moedas falsas muito antigas, sendo estas recolhidas à Tesouraria Geral.

Pela devassa e exame a qual procedi sobre a descoberta de moedas no distrito do Rio Preto, nada mais se depreende de ter havido naquele sítio Casa de Moeda Falsa muito antiga, como V. Exa. verá pela data das mesmas moedas que foram incluídas na atual remessa. Dirijo à presença de V. Exa para serem depois recolhidas depois à Tesouraria Geral. Acham-se nos cofres desta Intendência vários depósitos amortizados há mais de trinta anos, há outros de menos tempo, procedidos de moedas confiscadas. E outros de diferente natureza que pelo seu respeito e por terem falecido talvez às pessoas a quem pertenciam, estão aqui em esquecimento e podem se utilizar na massa geral da Real Fazenda sem risco de se extraviarem. Queira portanto V. Exa. mandar-me ordem para serem recolhidos à Tesouraria  Geral onde os considero com menor risco para se juntar aos Autos da Ordem e assinar nos mesmos o condutor na entrega das referidas quantias amortizadas, sem a qual formalidade eu não posso arrematar a sobredita ordem, bem como outra que por utilidade do Real Serviço e dos oficiais desta Casa, rogo à V. Exa. que sempre nas remessas dos Quintos os mais interesse servir para esta capital, sejam nomeados privativamente dois soldados dos que se acham no serviço desta Intendência, aprovados por mim como dantes se havia praticado por estar sempre prontos como é necessário, como também porque o condutor assina nos livros a entrega do que se toma conta, ficando aqui responsável a dar a mesma conta com os totais conhecimentos das quantias as quais foi encarregado, de toda e qualquer falta que acontecer, o que não se pode verificar de outra sorte sem maior incômodo, ficando rendido na praça o condutor e seu companheiro e os oficiais desta Casa a providência de que tendo o privilégio de cobrar com o avanço dos seus ordenados, se lhe retarda por outro modo o seu pagamento, sentindo ele e as suas famílias o incomodo que há consequentemente, além de ser inútil o seu privilégio. Espero que V. Exa., persuadida dos motivos ponderados, queira assentir as minhas rogativas, mandando com a brevidade possível se passem as ordens tanto para a remessa dos depósito como ficam exposto, como ao comandante do destacamento desta Vila, sobre a nomeação dos soldados que devem conduzir as remessas, fazendo V. Exa. constar o que ordenar a esse respeito para o meu governo e para poder tudo executar na atual, o que devo partir nesse mesmo. Deus guarde V. Exa., São João Del-Rey, 4 de janeiro de 1804.

Dirigido ao governador e capitão general da capitania de Minas, Pedro Maria Xavier de Athaíde e Mello.

Quem assina é o intendente Joaquim José Soares de Araújo.”

 ***

    Por todo o exposto, o presente documento surge como um dos registros históricos descobertos mais importantes para a região do Vale do Rio Preto. Não só pela antiguidade, mas também pelo teor do documento, que indubitavelmente insere Rio Preto como um dos municípios mais emblemáticos para o ciclo do ouro na região, no estado e no país. Afinal, o município ao longo desse período abrigou movimentadas rotas de contrabando do ouro, uma casa de moeda falsa e também um dos últimos e mais expressivos descobertos auríferos de Minas Gerais!


*Rodrigo Magalhães, pesquisador e historiador riopretano

[1] ARQUIVO PÚBLICO MINEIRO. Secretaria de Governo da Capitania. Seção Colonial. SG-CX 59-DOC 03.

[2] A Casa de Moeda Falsa do Paraopeba - https://pt.wikipedia.org/.../Casa_de_Moeda_falsa_do...

[3] MOEDAS FALSAS E NEGÓCIOS: O TERRITÓRIO DO LÍCITO E DO ILÍCITO NAS MINAS SETECENTISTAS- PDF -André Rezende Guimarães - Mestrando em História Departamento de História, FAFICH, UFMG.

[4] CINTRA, Sebastião de Oliveira. Efemérides de São João del-Rei.  Vol. I, p. 136.

[5] Intendente era o responsável pela arrecadação; como se fosse um secretário da Fazenda que cuidava das finanças do município.

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