Blog Rio Preto Noutros Tempos – por Rodrigo Magalhães*
Recebi recentemente de um amigo pesquisador um documento de inestimável valor histórico para toda a região do Vale do Rio Preto. Marcos Paulo de Souza Miranda, sócio efetivo do Instituto Histórico e Geográfico de Minas Gerais, localizou nos acervos do Arquivo Público Mineiro uma verdadeira joia para a nossa historiografia. Trata-se de um documento datado de 1804, cujo teor confirma que existiu uma Casa da Moeda Falsa muito antiga em Rio Preto (já existia antes de 1780 - sec. XVIII). Com o título - “INFORMAÇÃO DE SERVIÇO QUE FAZ O INTENDENTE DA VILA DE SÃO JOÃO DEL-REY AO GOVERNADOR, sobre a devassa feita no distrito do Rio Preto, em um sítio onde se encontrou moedas falsas muito antigas, sendo estas recolhidas à Tesouraria Geral”[1] – o registro é um lastro documental (fonte fidedigna) que insere o município de Rio Preto definitivamente no contexto histórico do ciclo do ouro no Brasil!
Casas Clandestinas de Fundição
Foi
no fim do século XVII que se revelou em Minas Gerais a ocorrência de ouro. E
Portugal exerceu sobre a exploração do ouro grande controle, criando para esse
fim vários mecanismos, como a Intendência de Minas e as Casas de Fundição. A
primeira tinha a função de distribuir terras para a exploração do ouro, fiscalizar
e cobrar impostos. As Casas de Fundição, por sua vez, eram locais em que todo o
ouro encontrado nas minas eram transformados em barras para facilitar a
cobrança de impostos durante o ciclo do ouro.
Em
1719 foi instituída a nova lei do quinto que determinava a instalação de Casas
de Fundição nas Minas Gerais e proibia a circulação de ouro em pó, que era
facilmente contrabandeado. Nas Casas de Fundição o ouro seria fundido,
transformado em barras, cunhado com o selo real e deduzido a quinta parte
correspondente ao imposto. O ouro só poderia circular após passar por todo
aquele processo fiscal.
O
município de Rio Preto, sito na zona da mata mineira, foi palco de um curioso
episódio relacionado a esse sentimento de rigor tributário em contraponto com a
sonegação, que é a instalação de uma casa clandestina de fundição de moedas (ou
lingotes circulares de ouro), na segunda metade do século XVIII, também chamada
de “Fábrica de Moedas falsas”, que faria o mesmo papel das casas oficiais,
contudo a custo menor. Os cunhos provavelmente haviam sido roubados de outras
casas de fundição e a moeda ali produzida foi chamada de falsa pelo fato de que
o ouro não era fundido ou “quintado” nas Casas de Fundição Reais.
Em todo o estado de Minas Gerais são raríssimos os documentos (idôneos) que demonstram o funcionamento de Casas de Moedas Falsas, como a que existiu em Rio Preto entre a segunda metade do século XVIII e o início do século XIX. A pioneira e mais famosa dessas casas clandestinas de fundição de ouro ficava no atual município de Moeda. Conhecida atualmente por Casa de Moeda Falsa do Paraopeba ou Fábrica do Paraopeba, é um sítio arqueológico remanescente de uma fundição clandestina de moeda que funcionou durante o auge do ciclo do ouro no século XVIII na antiga Capitania de Minas Gerais. A casa fundia e cunhava moedas com equipamentos roubados de casas de fundições oficiais do Rio de Janeiro e cobrava um "imposto" menor que o quinto do ouro cobrado pela Coroa portuguesa.
| Ruínas da Casa de Moeda Falsa do Paraopeba/MG (Foto de Internet) |
A
fábrica era altamente fortificada com armamento bélico, que a mantinha
protegida de forasteiros e vizinhos curiosos. Explica a historiadora Luana
Martins, através de informação retirada da Revista do Arquivo Público Mineiro,
que o trecho mais próximo àquela antiga Fábrica foi chamado de “Fortaleza”,
pois, segundo relatos, diante da aproximação dos possíveis “clientes”, eram
emitidos sinais com tiros de trabucos.[2]
A
fortificação, além de ser belicamente protegida, localizava-se em posição
estratégica, nos contrafortes da vertente ocidental da então chamada Serra do
Paraopeba, escondida dos caminhos novos da Estrada Real que passavam pelo outro
lado da serra e conduziam o ouro produzido nas principais minas de Vila Rica,
Mariana e Sabará e por onde passavam os ouvidores a serviço da Coroa.
A
fábrica funcionava com trabalho de aproximadamente cem homens de diversas
origens, inclusive antigos funcionários da administração portuguesa na América,
e era comandada por Inácio de Souza Ferreira. Outro fato interessante é um
“Regulamento” criado por Ignácio Ferreira, líder do grupo, que descreviam as
atividades no cotidiano da casa de fundição e as severas medidas disciplinares
que eram impostas a quem ousasse desobedecer. O documento previa pena de morte
para quem saísse das instalações da fábrica sem o consentimento.[3]
Essa
casa de fundição foi desativada ainda no século XVIII e, atualmente,
encontra-se em ruínas. Foi essa fabricação clandestina de moeda que deu origem
ao atual topônimo da Serra da Moeda, bem como ao município mineiro de Moeda.
Casa
da Moeda Falsa de Rio Preto
Antes do ciclo do ouro, o território que atualmente pertence ao município de Rio Preto já era habitado pelos índios Coroados (denominou-se genericamente Coroados a todos eles, não obstante serem parte de diversas sociedades indígenas, todas linguisticamente vinculadas à família Puri-Coroado) e denominava-se Sertão do Rio Preto.
Devido a sua localização estratégica - situado entre as Estradas Reais (‘Caminho Velho’ e ‘Caminho Novo’) que abrigavam postos fiscais de fiscalização e de arrecadação do quinto, essa região foi muito utilizada como rota de contrabando do ouro que saía das minas gerais com destino aos portos do Rio de Janeiro. Por essa razão, em 1755, quando se descobriu que algumas pessoas teriam aberto picadas que cruzavam aqueles sertões e lá habitavam, o governador interino José Antônio Freire de Andrada (2º Conde de Bobadela) publicou um Bando confirmando “os sertões do distrito da Mantiqueira” como 'árias prohibidas'.
Assim,
a escolha do território do atual município de Rio Preto para se instalar uma
fábrica clandestina de fundição de ouro não foi ao acaso: além de se situar em
uma rota clandestina, cujo percurso entre as minas e os portos era mais curto e
livre de fiscalização, a região era declarada oficialmente como área proibida,
onde não era permitido povoar e nem mesmo transitar.
Interessante
observar, no entanto, que na segunda metade do século XVIII a mineração já
havia entrado em decadência com o esgotamento das jazidas na principal região
aurífera de Minas Gerais, onde ficavam as chamadas Vilas do Ouro - Ouro Preto,
Mariana, Serro, Caeté, São João del-Rei, Pitangui, Sabará e São José do Rio das
Mortes. Por essa razão, podemos supor que a Casa da Moeda Falsa de Rio Preto
pode ter sido instalada na primeira metade dos anos 1700. Mas certamente o
grande lapso de tempo que a mesma permaneceu em funcionamento se deve ao fato do
descobrimento de grande quantidade de ouro no Vale do Rio Preto por volta de
1780, conforme atestam diversos documentos.
A
região passou a ser chamada então de Descoberto do Rio Preto, e o ouro achado fartamente
no leito do rio Preto e em seus afluentes atraiu muitos povoadores, que
rapidamente se estabeleceram clandestinamente naquele sertão até então vedado. Por esse motivo, em 1780 o governador de Minas Gerais decidiu abrir a
região à mineração e ao povoamento, distribuindo as primeiras sesmarias e datas
minerais. Mas os ‘gentios bravios’ que habitavam aquele território há pelo menos 150 anos resistiram, e os
detentores dessas posses legais não lograram êxito em se estabelecerem por
essas paragens, uma vez que suas fazendas e plantações eram atacadas
frequentemente pelos indígenas.
Como
podemos vislumbrar agora, uma exceção foi a Casa de Fundição de Ouro que se
instalara em Rio Preto na segunda metade do século XVIII, de forma clandestina,
e se manteve em funcionamento na região até 1804, quando finalmente os
proprietários e funcionários foram descobertos e presos. Isto porque, demonstrando
preocupação com o afluxo populacional na região, em 24 de março de 1801 a
Câmara da Vila de São João del-Rei havia proposto a criação de dois distritos
no “Sertão e Descoberto do Rio Preto”, para “remediar as desordens que se
verificavam na região, catequizar os gentios e aumentar a arrecadação de
tributos”.[4]
| Ruínas da Casa de Pedra - Rio Preto/MG Foto: Igor Alecsander |
Casa
de Pedra
Os falsificadores de moedas certamente tiveram sucesso nessa empreitada criminosa devido à forte estrutura
bélica da casa que erigiram no outrora Sertão Proibido do Rio Preto. Trata-se
possivelmente das ruínas conhecidas atualmente como ‘Casa de Pedra’, patrimônio
histórico tombado pelo município e consolidada como um dos cartões postais mais
icônicos e visitados de Rio Preto.
Situada
nas proximidades de Santo Antônio das Varejas, na zona rural do município de
Rio Preto, possui uma estrutura monumental, grande e feita de pedra e
alvenaria, seguindo um modelo básico que se manteve ao longo dos séculos para
os fortins, de planta quadrangular. Os vestígios remanescentes constituem uma
área construída de cerca de 50 m² (9,00 m x 5,55 m); as paredes possuem
espessura de 0,80 m; a altura interna varia entre 3,70 e 3,90 m e, na área
externa, notam-se paredes com mais de 4,00 m de altura.
A
casa em que possivelmente funcionava a fundição clandestina de ouro em Rio
Preto possuía duas grandes janelas frontais que se parecem com duas baterias de
artilharia, pois apresentam um afunilamento nas laterais (de dentro para fora);
são grandes aberturas verticais, e se parecem com aquelas utilizadas na arquitetura militar como vão de
observação, vigia e tiro. Esse detalhe arquitetônico sugere que essas janelas
foram construídas para receber artilharia leve, mas também pequenos canhões,
dispostos para guarnecer o portão de entrada, permitindo aos vigias, assim,
maior visibilidade e dando-lhes mais proteção contra os indígenas, os curiosos
e as tropas e patrulhas a serviço da Coroa portuguesa.
Dentre
tantas serventias atribuídas à Casa de Pedra pela tradição oral ao longo dos
anos – 'Fortim Bandeirante', 'Casa Forte', 'Fortaleza Militar', etc. – a função de ‘Casa Clandestina de Fundição de Ouro’ já havia sido citada por moradores antigos da
localidade, mas sem qualquer lastro documental que amparasse tal
possibilidade.
Documento Histórico
Eis
o teor do documento, que se encontra no Arquivo Público Mineiro, em Belo
Horizonte, no Fundo “Secretaria de Governo da Capitania”, na Seção Colonial (:
“INFORMAÇÃO
DE SERVIÇO QUE FAZ O INTENDENTE[5]
DA VILA DE SÃO JOÃO DEL-REY AO GOVERNADOR, sobre a devassa feita no distrito do
Rio Preto, em um sítio onde se encontrou moedas falsas muito antigas, sendo
estas recolhidas à Tesouraria Geral.
Pela
devassa e exame a qual procedi sobre a descoberta de moedas no distrito do Rio
Preto, nada mais se depreende de ter havido naquele sítio Casa de Moeda Falsa
muito antiga, como V. Exa. verá pela data das mesmas moedas que foram incluídas
na atual remessa. Dirijo à presença de V. Exa para serem depois recolhidas
depois à Tesouraria Geral. Acham-se nos cofres desta Intendência vários
depósitos amortizados há mais de trinta anos, há outros de menos tempo,
procedidos de moedas confiscadas. E outros de diferente natureza que pelo seu
respeito e por terem falecido talvez às pessoas a quem pertenciam, estão aqui
em esquecimento e podem se utilizar na massa geral da Real Fazenda sem risco de
se extraviarem. Queira portanto V. Exa. mandar-me ordem para serem recolhidos à
Tesouraria Geral onde os considero com
menor risco para se juntar aos Autos da Ordem e assinar nos mesmos o condutor
na entrega das referidas quantias amortizadas, sem a qual formalidade eu não
posso arrematar a sobredita ordem, bem como outra que por utilidade do Real
Serviço e dos oficiais desta Casa, rogo à V. Exa. que sempre nas remessas dos
Quintos os mais interesse servir para esta capital, sejam nomeados
privativamente dois soldados dos que se acham no serviço desta Intendência,
aprovados por mim como dantes se havia praticado por estar sempre prontos como
é necessário, como também porque o condutor assina nos livros a entrega do que
se toma conta, ficando aqui responsável a dar a mesma conta com os totais
conhecimentos das quantias as quais foi encarregado, de toda e qualquer falta
que acontecer, o que não se pode verificar de outra sorte sem maior incômodo,
ficando rendido na praça o condutor e seu companheiro e os oficiais desta Casa
a providência de que tendo o privilégio de cobrar com o avanço dos seus
ordenados, se lhe retarda por outro modo o seu pagamento, sentindo ele e as
suas famílias o incomodo que há consequentemente, além de ser inútil o seu
privilégio. Espero que V. Exa., persuadida dos motivos ponderados, queira
assentir as minhas rogativas, mandando com a brevidade possível se passem as
ordens tanto para a remessa dos depósito como ficam exposto, como ao comandante
do destacamento desta Vila, sobre a nomeação dos soldados que devem conduzir as
remessas, fazendo V. Exa. constar o que ordenar a esse respeito para o meu
governo e para poder tudo executar na atual, o que devo partir nesse mesmo.
Deus guarde V. Exa., São João Del-Rey, 4 de janeiro de 1804.
Dirigido
ao governador e capitão general da capitania de Minas, Pedro Maria Xavier de
Athaíde e Mello.
Quem
assina é o intendente Joaquim José Soares de Araújo.”
***
Por
todo o exposto, o presente documento surge como um dos registros históricos
descobertos mais importantes para a região do Vale do Rio Preto. Não só pela
antiguidade, mas também pelo teor do documento, que indubitavelmente insere Rio
Preto como um dos municípios mais emblemáticos para o ciclo do ouro na região,
no estado e no país. Afinal, o município ao longo desse período abrigou
movimentadas rotas de contrabando do ouro, uma casa de moeda falsa e também um
dos últimos e mais expressivos descobertos auríferos de Minas Gerais!
*Rodrigo
Magalhães, pesquisador e historiador riopretano
[2]
[3]
[4] CINTRA, Sebastião de Oliveira. Efemérides de São João del-Rei. Vol. I, p. 136.
[5]
Intendente era o responsável pela arrecadação; como se fosse um secretário da
Fazenda que cuidava das finanças do município.
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