Blog Rio Preto Noutros Tempos – por Rodrigo Magalhães*
Os
povos indígenas contribuíram de forma significativa para a formação do povo
valeriopretano. Oriundos de Campos dos Goytacazes/RJ, das cercanias da foz do
rio Paraíba do Sul, curso d’água que lhes guiou até chegarem ao outrora Sertão
do Rio Preto, nas primeiras décadas do século 17, fugindo da colonização da
costa.
Esta
região atualmente é conhecida por Vale do Rio Preto (parte integrante do Vale
do Café), sita na zona da mata mineira e no sul fluminense, na divisa dos
Estados de Minas Gerais e do Rio de Janeiro, e foram justamente esses indígenas
que denominaram o principal flume que corta a região de Paraúna (ou Parapeúna) –
rio Preto, um dos principais afluentes do rio Paraíba do Sul.
Apelidados
genericamente de Coroados, esses indígenas foram os primeiros habitantes da
região. Por isso, com o propósito de preservação da memória desses povos
nativos, segue abaixo um breve histórico da saga dos Coroados no Vale do Rio
Preto, coligido de fontes diversas da historiografia regional. A narrativa
detalha o modo de vida, os costumes, as aldeias e os aldeamentos, bem como lendas, personagens e
batalhas. Boa leitura!
Coroados do Rio Bonito
Logo
que desembarcou no Rio de Janeiro, em 1º de junho de 1816, o francês Auguste de
Saint-Hilaire dirigiu-se às proximidades da região de Valença/RJ, onde um
fazendeiro reuniu alguns índios Coroados, que “habitam as florestas vizinhas do rio Bonito” (atual distrito de Pentagna),
e rogaram que dançassem a fim de agradar o viajante europeu. Conta ele que, ao
término da apresentação, o mais jovem, chamado Buré, mantendo-se de pé,
dirigiu-lhe o discurso seguinte em mau português: “Esta terra nos pertence, e são os brancos que a cobrem. Desde a morte
do nosso capitão, somos escorraçados de toda parte, e não temos mais nem lugar
suficiente para repousar a cabeça. Dizei ao rei que os brancos nos tratam como
cães e rogai-lhe que
nos dê terras para podermos construir uma aldeia”.
Cientista
de notáveis méritos, Saint-Hilaire era também um fino observador dos costumes,
do modo de vida e das instituições dos povos por ele visitados no Brasil. Além
de ir ao encontro dos índios Coroados do Rio Bonito em 1816, esse francês passou
ainda por três oportunidades pelo Registro do Rio Preto: 1817, 1819 e 1822. O
seu diário de viagem constituiu o esboço de extensa e importante obra posterior,
em que está registrada parte considerável da memória histórica de nossa região.
Segundo ele, até 1800 os Coroados eram os “senhores
da região compreendida entre o Parahyba e o Rio Preto”. Além de habitar
todo esse território que a seguir seria denominado de Sertão do Rio Preto,
consta que esses indígenas “faziam
incursões frequentes no território das parochias vizinhas”.
Por fim, em sua última passagem por Valença em 1822, Saint-Hilaire
observou em relação aos índios Coroados que, se “há apenas 50 anos eles possuíam toda essa região, onde nenhum branco
teria, certamente, a ousadia de se mostrar, na época dessa viagem era no meio
dos filhos de portugueses, feitos senhores do país, que erravam os escassos
restos da sua nação”.
Árvore genealógica dos
Coroados
Vem
de Saint-Hilaire a explicação mais aceita sobre a chegada desses índios à
região do Vale do Rio Preto, originários dos Goitacazes da foz do rio Paraíba
do Sul no mar, bem como a respeito da denominação genérica de Coroados ser ligada
ao tipo de corte de cabelo adotado pelos mesmos em seu novo habitat: “Parece certo que tiveram por progenitores os
índios Goitacazes que, expulsos pelos portuguezes, por volta de 1630, dos
campos vizinhos á foz do rio Parahyba no mar (Campos dos Goitacazes), se
dispersaram pelas florestas de Minas e do Rio de Janeiro. Os Goitacazes não
podiam conservar, em florestas quase impenetráveis, os hábitos contrahidos no
meio de campos inteiramente descobertos; renunciaram á longa cabeleira, e o
modo por que a cortaram lhes fez dar, por seus vencedores, o nome de Coroados”.
E continua: “É bom acrescentar ao nome
desses Coroados o de um rio que corre na sua região, o Rio Bonito, e chamá-los
de Coroados do Rio Bonito. Por este meio, impedir-se-á confundi-los com os
Coroados de Mato Grosso, com os de São Paulo e, ainda, com os Coroados do Rio
Chipotó”.
Desde os
primeiros contatos, logo após o descobrimento do Brasil, os Goitacazes foram
considerados pelos europeus como “selvagens
ferozes e antropófagos”, ou seja, eram bravos e comiam carne humana. E no
decorrer dos anos, os Goitacá (ou Waitaka), “tapuias” do grupo Jê, forram tidos
como a mais agressiva dentre todas as nações do litoral brasileiro. “Intrépidos pescadores de tubarão e canibais
inveterados”.
Os primeiros
registros desses indígenas no Vale do Rio Preto, datado de 1783, confirmam que
se tratava de “gentios bravios”. “Com
estes homens se não pode tratar da paz, sem as armas nas mãos pelo eminente
perigo que há por serem faltos de todas a boa fé” – revela-nos uma
interessante correspondência do comandante do Corpo de Ordenanças de Rio Preto,
de agosto daquele ano, pedindo autorização para atirar nos índios que, segundo
ele, tinham atacado alguns fazendeiros da região, matando mais de dez pessoas
entre brancos e escravizados negros. Informava, ainda, que os indígenas tinham
levado todos os corpos para a aldeia, sugerindo, assim, que ainda preservavam o
costume da antropofagia.
A Batalha do Sertão do Rio Preto
“Naqueles Certões da parte da lem do Rio
Preto, distante, meia, uma, duas, e mais léguas, se achão quatro Nações de
gentios diferentes, quais são Coroados, Cahicenes (sic.), Poris (sic.) e
Mariquitas. Com estes homens se não pode tratar da paz, sem as armas nas mãos
pelo eminente perigo que há por serem faltos de todas a boa fé” – acrescenta-nos
a mesma correspondência do comandante do Corpo de Ordenanças de Rio Preto, do
final do séc. 18.
Corria o ano
de 1783. Quinze de agosto. Dois jovens brancos, acompanhados de dois escravos,
achavam-se trabalhando no ribeirão Pirapetinga, cuja foz faz barra no rio Preto
(cachoeira de Barbosa Gonçalves). Os
quatro tinham a atenção voltada para o ouro que encontravam com facilidade naquele
local, quando um grupo de indígenas os surpreendeu. Logo após render os quatro,
os gentios os conduziram para a sua aldeia situada a poucas léguas daquele
local.
Enquanto a
notícia do sequestro ainda se espalhava pela região, no dia 28 do mesmo mês
aconteceu mais um ataque indígena, um pouco acima da margem do rio Preto onde
ocorrera o primeiro. Desta vez, os gentios teriam matado doze pessoas: quatro
homens brancos e oito negros escravizados. Logo após, conduziram todos os
corpos para a aldeia. A diferença é que nesse segundo atentado teve testemunha.
Um casal de escravos conseguiu escapar do ataque e relatar o ocorrido. Constou,
inclusive, que a escrava se feriu com mais gravidade no conflito, “vindo a preta frechada em suas partes...”
A partir de 1781,
quando o presidente da província de Minas visitou pessoalmente a região e
decidiu abrir o até então Sertão
Prohibido do Rio Preto para a mineração, as primeiras sesmarias foram
concedidas e muitas pessoas migraram para o território até então habitado pelos
índios. Ao encontrarem ouro em abundância no rio Preto e em seus afluentes, a
região passou a ser conhecida por Descoberto da Mantiqueira. Esses
desbravadores eram incentivados pela Coroa portuguesa a se estabeleceram por
aquelas paragens, com o intuito de aumentarem o recebimento do imposto devido
pela extração aurífera (quinto).
Como era de se
esperar, os indígenas se opuseram a isso e mostraram-se revoltosos com a
invasão e a posse indevida de suas terras. De acordo com o referido capitão,
chamado Francisco da Costa Pereira, morador e comandante da região, foi no
decorrer do ano de 1783 que ocorreram os primeiros conflitos entre brancos e
índios nessa região do Vale do Rio Preto. Segundo ele, os gentios inicialmente
devassavam as plantações das fazendas e furtavam os mantimentos desses
primeiros sesmeiros. Mas, depois dos sequestros e assassinados, os moradores
reagiram e decidiram se vingar, iniciando, então, uma verdadeira caça ao índio.
Imediatamente
organizaram um abaixo-assinado, em que aparece um número impressionante de
oitenta e cinco pessoas que já residiam nessa região, com suas respectivas
famílias e seus escravos, que assinaram a mencionada correspondência endereçada
para Vila Rica (Ouro Preto), na pessoa de “José
Antonio de Mattos, Official Mayor da Secretaria”, pedindo autorização para
atirar nos índios: “(...) vem os
suplicantes em consternação cauzada pelos gentios que vizinhamente se acham
aldeados fazendo distúrbios como foi matarem cuatro brancos e oito pretos e
mais dois brancos e dois pretos que se presume este quatro os levaram vivos
sendo causa de ter despejado todos os moradores daquele sertão não podendo
cultivarem as sesmarias e inda no risco de fazerem dano aos moradores... pedem
licença para no caso de estarem renitentes se lhe poder atirar para os
atemorizar afim de melhor se renderem e resgatar aqueles cuatro que se presume
estarem em poder daqueles ireges (hereges)”.
Todavia, ao
que tudo indica, encontraram uma quantidade maior do que imaginavam de
indígenas pelas matas do Sertão do Rio Preto. Fez-se necessário, então, pedir
auxílio aos demais Corpos de Ordenanças existentes nas proximidades, que eram
as Companhias de Aiuruoca, Andrelândia, Carrancas, Serranos, Alagoa, Santana do
Garambéu, Ibitipoca, Santa Rita de Ibitipoca e Ibertioga.
Organizou-se,
assim, uma verdadeira guerra contra os índios que habitavam os chamados matos
gerais do Rio Preto. Esse expressivo contingente militar, fortemente armado,
dirigiu-se para a região, e certamente obtiveram êxito nessa segunda tentativa.
Pode-se concluir que essa batalha de grandes proporções foi a principal
responsável pela drástica redução da população indígena que habitava essa
região do Vale do Rio Preto, onde atualmente estão situados os municípios de
Valença/RJ, Rio Preto/MG e Santa Rita de Jacutinga/MG.
Os
Aldeamentos
A
partir dessa grande batalha, todos aqueles índios que aceitassem abandonar suas
aldeias de origem e desistissem do seu modo de vida tradicional, sem oferecer
resistência armada, passavam a ser considerados "índios de pazes" ou
"índios amigos"; eram catequizados, batizados e aldeados em outras
áreas, de onde eram periodicamente retirados para prestarem serviço aos
colonizadores.
Tem-se
registro de três aldeamentos promovidos na região do Sertão do Rio Preto: dois
em Valença/RJ – “Aldêa de N. S. Senhora
da Glória de Valença” (na parte central da atual cidade de Valença, formado
pelos índios Coroados) e ”Aldêa de Santo
Antônio do Rio Bonito” (no atual distrito de Conservatória, composto por
índios Araris), e outro em Santa Rita de Jacutinga/MG - “Aldêa da Serra da Jacutinga” (próximo a atual cidade de Santa Rita
de Jacutinga, habitado pelos temidos índios Puris).
Logo
após o processo de aquartelamento, os índios dos aldeamentos começavam a ser
batizados de forma mais sistemática. São poucos os registros de batismos
existentes desses primeiros habitantes do território do Sertão do Rio Preto. Em
25 de maio de 1801 foi batizada em Rio Preto “Felícia Maria do Espírito do Santo, gentia do mato que por si pediu o
batismo dizendo que nunca fora batizada”. Na mesma data foi batizada “Maria, de 10 anos, mais ou menos, filha
natural da mesma Felícia”.
A maior parte dos sacramentos aconteceram em Rio Preto, a povoação mais antiga da região que na época era chamada de "Presídio do Rio Preto", na Ermida de Nosso Senhor dos Passos, que se situava no atual cemitério do Senhor dos Passos, no centro da cidade. Essa pioneira capela do Vale do Rio Preto foi erigida no século XVIII. Em 1791, quando Barbacena foi elevada à Vila, uma de suas capelas filiadas era justamente a da "Aplicação de Nosso Senhor dos Passos do Rio Preto". Por essa razão, os apontamentos mais interessantes em relação aos indígenas da região se encontram nos Registros da Igreja Católica de Barbacena.

“Aos
26 de janeiro de 1807 anos na Ermida do Senhor dos Passos do Rio Preto, filial
desta Matriz de Barbacena, o padre José Luiz Côrrea, de licença minha batizou e
pôs os santos óleos a Antônio, inocente, filho natural de Teodora Ferreira
Índia. Foram padrinhos: Antônio José de Freitas e Inez Índia, do que mandei fazer...”. Portanto, foi batizado um recém nascido indígena, filho de uma índia já batizada, cuja madrinha também era uma indígena.

Dois anos depois, Inez Índia aparece novamente nos registros paroquiais. Certamente era uma pessoa com destaque social em Rio Preto, sendo que um filho seu foi sepultado dentro da única igreja local, honraria permitida apenas para aqueles que faziam parte da nobreza rural ou da burguesia urbana. Chama a atenção também o fato de a ordem para o local do sepultamento ter sido emanada do Diretor dos Índios do Sertão do Rio Preto e potentado minerador. “Aos
6 de novembro de 1809 anos faleceu Francisco, inocente, filho de Francisca
Índia; foi encomendada de licença minha, pelo padre Antônio Vicente de Almada,
e sepultado dentro da Ermida de Nosso Senhor dos Passos de Rio Preto, por ordem
do Capitão Miguel Rodrigues da Costa”.

Outro indígena do Vale do Rio Preto que foi sepultado na parte de dentro da capela, e não no seu adro, foi José Índio, que provavelmente era outro destacado indígena daquela região, pelo menos sob a ótica católica do colonizador luso-brasileiro. “Aos 22 de setembro de 1810 anos,
faleceu com sacramentos da penitência e unção, José Índio, adulto; foi
encomendado de licença minha pelo padre Antônio Vicente de Almada e sepultado
dentro da Ermida do Senhor dos Passos do Rio Preto, filial desta matriz de
Barbacena, do que mandei fazer o presente assento. Vigário José Agostinho
Fialho de Castro”.
***
Mas
de todos os aldeamentos promovidos na região, sem dúvida o de maior destaque é
aquele onde se fundou uma capelinha em 1803 sob a invocação de Nossa Senhora da
Glória (provavelmente por influência do Diretor dos Índios, José Rodrigues da
Cruz, proprietário da Fazenda que já há alguns anos denominara de “Nossa Senhora da Glória da Paraíba do Sul”),
tomando o nome de Valença em honra ao então vice-rei D. Fernando José de
Portugal e Castro, descendentes dos nobres de Valença (Portugal).
E
foi a formação desse aldeamento que deu origem a atual cidade de Valença. Nesse
sentido, confirma o viajante inglês R. Walsh, que passou por Valença em
dezembro de 1828 e assim registrou: “Trata-se
originalmente de uma das aldeias onde se instalavam os índios catequisados”.
O
Cerro da Coroa
Diversas
lendas regionais remetem aos povos nativos do Vale do Rio Preto. Mas,
certamente, aquela denominada de O Cerro
da Coroa, considerada a lenda valenciana por excelência, imortalizada em
versos por poetas, é a mais emblemática e significativa da região.
Segundo
essa fábula de mais de duzentos anos, a pequena colina escolhida para se erigir
a pioneira capela de Valença, a partir da qual teve origem a cidade e a sua
padroeira, era um local sagrado para os indígenas. De acordo com a tradição
oral, era ali o lugar onde esses primitivos habitantes acreditavam avistar em
determinadas ocasiões, sob o reflexo de intensa luz solar, uma grande e bela
coroa em meio à extensa mata virgem.
Conta-se
que no exato local onde hoje predomina soberana a suntuosa igreja Catedral de
Nossa Senhora da Glória, no alvorecer do século 19, existia uma extraordinária
“Árvore-Chorona”, circundada de uma ramagem que esporadicamente ficava repleta
de flores, formando a configuração de uma coroa. Os índios chamavam o local de
Juyteraipuira – Cerro da Coroa: Sarakena + oca, ou seja, lugar famoso ou da
glória.
A
relação afetuosa que os povos indígenas estabeleciam com a natureza fazia com
que eles mantivessem uma conexão mais próxima e sagrada com a Terra. Por essa
razão, o Juyteraipuira era um local sagrado para os Coroados, que na época de
floração se dirigiam para o topo da Serra dos Mascastes e das Cobras, de onde
podiam contemplar aquele extraordinário fenômeno da natureza que ocorria apenas
em alguns períodos do ano.
De
certos pontos dessas serras, os índios tinham a vista privilegiada do extenso
tapete de mata virgem que cobria, ondulante, os montes mais baixos e os vales.
E naquele cerro específico, parecia que o conjunto de ramificações menores e
mais altas das árvores se movia, criando pequenas elevações arredondadas, como
se fossem tumores que misteriosamente surgiam naquele ponto da floresta. O
fenômeno surpreendia os indígenas que ali permaneciam o dia todo a contemplar
e, sob a beleza de um anoitecer colorido e encantador, via ainda que inclinado
para a Serra dos Mascastes, descer do céu um comprido filete de luz que se
abria sobre aquela elevação, iluminando e dando ainda mais destaque à
esplendorosa imagem em forma de coroa, posicionada bem ao centro do cerro.
Com
a chegada do elemento civilizador à região (“homem branco”), vê-se que aquele
local que os Coroados tinham como mítico e sagrado, tratava-se, na verdade, de
um cerro quase escampo, circundado por uma grinalda de árvores pequenas,
troncos esbranquiçados e esguios, pouca folhagem, mas cheios de parasitas em
flor. E a mancha de um lado, ao alto, era uma frondosa árvore que parecia
“transpirar”, que os índios chamavam de “puira de pai-tucura”.
Constataram
que, de fato, quem sob ela se encontrava, parecia ver cair lágrimas daquela
extraordinária árvore, em certas ocasiões. E não eram de chuva, porque não
chovia naquele dia; nem era de orvalho, pois a época não era própria dele.
Assim, tendenciosos pela catequização daqueles índios que há pouco iniciara,
interpretaram aquele fenômeno da natureza como um milagre. Edificou-se, então,
à sombra daquela árvore uma singela capela, e determinou-se que aquele local de
glória para os Coroados seria o ideal para a implantação do aldeamento indígena
da região.
Por volta de 1817, quando adoecera o filho
de um português que havia se casado com a índia mais bela dessas paragens,
devoto de Nossa Senhora da Glória, ele teria feito uma promessa àquela santa:
mandaria vir de Portugal uma imagem de N. S. da Glória, se o bebê se salvasse.
Operado o milagre, cumpriu-se a promessa, instalando-se, então, um oratório na
capelinha, onde a imagem foi posta à veneração dos primeiros valencianos -
indígenas e portugueses. Nascia ali o núcleo central, do que seria mais tarde a
cidade de Valença!
Os Diretores dos Índios
Os
povos indígenas contribuíram de forma significativa para a cultura, os costumes
e a formação da população do Vale do Rio Preto. Foram eles também os principais
responsáveis pelo enriquecimento dos primeiros colonizadores, notadamente como
mão de obra inaugural, ainda no final do século 18 e início do seguinte. Á
época houve uma verdadeira parceria entre esses percussores fazendeiros da
região: visando terras, ouro e, principalmente, os índios.
Acredita-se
que foi nas últimas décadas do século 17 que ocorreram os primeiros contatos
dos bandeirantes paulistas com os índios que habitavam as florestas seculares e
as matas virgens do então chamado “Cêrtão
do Rio Prêto”. Mas são das últimas décadas dos 1700 os primeiros registros
dos “Indios dos Certões dalem do Rio
Preto”, conforme foram denominados primeiramente. Datam dos primeiros anos
dos 1780 e dão conta de que viviam em um território que se estendia desde os
atuais municípios fluminenses de Rio das Flores e Valença, passando pelos
mineiros Santa Bárbara do Monte Verde e Rio Preto, indo até a região onde o
município de Santa Rita de Jacutinga faz limite com Passa Vinte.
E com a
chegada de várias outras famílias que migraram para a região a fim de cultivar
as suas roças e, principalmente, a extrair ouro do rio Preto e seus afluentes,
como era de se esperar, os índios se opuseram a isso e mostraram-se revoltosos
com a invasão e a posse indevida de suas terras. Vencê-los, como às condições
ambientais da mata Atlântica e à fauna que por lá vivia, era esforço para
poucos.
Foi
nesse contexto que surgiu a figura do Diretor dos Índios e deu-se princípio à
catequese e civilização dos mesmos. O fazendeiro José Rodrigues da Cruz, senhor
da fazenda de Ubá, foi a primeira pessoa a ocupar esse importante cargo no Vale
do Rio Preto, desde 1799, quando assumiu formalmente a função. Possuidor de
extensas terras que careciam de mão de obra para explorá-las, ele procurou logo
conquistar a simpatia desses indígenas. Valendo-se do subterfúgio de
representá-los em requerimentos ás autoridades portuguesas, obteve com
facilidade a prerrogativa de exercer controle sobre os índios da região, sem
que isso pudesse ser caracterizado como escravidão (que feria os princípios da
lei). Contornava, com esse expediente, os problemas de ordem jurídica e moral.
Desse
conluio participaria, além do Diretor dos índios (José Rodrigues), o Capitão
Miguel Rodrigues da Costa (comandante do Presídio de Rio Preto) e o Guarda-mor
Francisco Dionísio Bustamante Fortes (fundador da Fazenda Santa Clara), a
última personagem a ocupar esse importante e vantajoso cargo, até o ano de
1820, quando faleceu. Contra o segundo a exercer a função de Diretor dos Índios
do Vale do Rio Preto, o capitão Miguel Rodrigues, que era genro do antecessor,
houve, inclusive, uma representação formal nesse sentido, diretamente na
Assembleia Geral Constituinte, em 1823.
Vários estudos
e fatos novos dão conta de que uma boa parcela desses indígenas que habitaram o
Vale do Rio Preto se prestou como reduto de mão de obra para a lavra mineral,
agrícola ou serviços gerais na construção civil. Pois, na realidade, os
negócios mais lucrativos de seus diretores concentravam-se em domesticá-los
para servirem de “braços” em suas extensas fazendas. Era o chamado “ouro
vermelho”, que nessas paragens à época era abundante, com predomínio dos
Coroados.
O episódio mais emblemático que comprova o uso de mão de obra indígena na intensa mineração ocorrida na região, no entanto, foi uma tragédia que teria acontecido no final do século XVIII, a alguns quilômetros do centro da cidade de Rio Preto, nas proximidade de um pequeno curso d'água que até os dias atuais é conhecido por "Córrego das Almas". Assim registrou esse desastre de grandes proporções na obra História Regional do Brasil, o riopretano doutor Henrique Furtado Portugal, membro efetivo do Instituto Histórico e Geográfico de Minas Gerais:
“A tradição oral informa que a mineração de ouro terminou por minguarem os veeiros e por um acidente trágico que enterrou mais de 200 homens, entre brancos, índios e escravos num grande fosso escavado às margens de um pequeno córrego, afluente da margem esquerda do ribeirão da Conceição, pequeno e atrevido curso d'água que passou a ser chamado 'Córrego das Almas', muitos se benzem quando por ali transitam, principalmente à noite”.
O Cacique Bocumam
Março
de 1803. José Rodrigues da Cruz, então diretor de índios de Valença, escreve
uma carta de ofício ao vice-rei do estado do Brasil, dom Fernando José de
Portugal. Informa que estava envolvido em um reconhecimento de índios nas
cabeceiras dos rios Preto e Flores, os Araris, “únicos que me parece restavam”, escreveria. Um ano depois, certa
sociedade de índios Ararizes procurou José Rodrigues para denunciar alguns
moradores do então Arraial do Rio Preto, em Minas Gerais. Queriam os índios
encontrar uma solução para “um caso de
conflito e morte entre a população indígena e os moradores riopretanos”.
O
diretor então envia uma carta da Aldeia de Valença ao Sr. Comandante da Guarda
do Presídio do Rio Preto, Capitão Miguel Rodrigues da Costa, na qual ele tenta
contar o que foi a ele narrado por dois índios sobreviventes de uma tocaia: um
índio com uma facada nas costas e o outro com um braço bem mal tratado e
cortado. Queixaram-se esses índios Ararizes que nas proximidades do Presídio
Velho de Rio Preto (atual Fazenda Santa Clara), avistaram uma plantação e, com
fome, arrancaram umas mandiocas para se alimentarem. E que anoitecendo,
dormiram no local, onde durante a noite apareceram três pessoas com facões e mataram
três índios a facadas e feriram esses dois que escaparam...
As circunstâncias alimentavam rumores de crise ou levante
de índios, liderados por um dos caciques, o Bocumam. Em geral, o cacique era
uma espécie de rei e senhor de trinta, oitenta ou cem famílias que lhe
obedeciam. Tudo se reduzia ao cacique, que era cabeça de governo. Tudo indica
que Bocumam era o líder maioral dos índios do Sertão do Rio Preto e, por outro
lado, o cacique mais respeitado e temido pelos brancos. Por isso, José
Rodrigues envia outra carta ao Presídio de Rio Preto. Segundo ele, os índios,
com as notícias das mortes, mostravam-se “revolvidos
e ofendidos”. Como súditos do rei, a nação chefiada por Bocumam
reivindicava por seus direitos e pressionavam-no mandar indagar os agressores e
prendê-los.
Até
em uma terceira e última carta aos militares de Rio Preto, o diretor dos índios
de Valença informa do sumiço de Bocumam e coloca em alertas aquelas
autoridades, sobre o perigo de uma retaliação aos fazendeiros mineiros que esse
fato poderia significar: “...Bocumam,
o capitão dos ditos índios foi buscar a sua Gente e até agora não vejo antes os
que se achavam aqui na Aldeia no dia 28 do corrente, se retiraram todos para o
Sertão...”
Não
há registro do resultado dessa batalha que se anunciara. Talvez pelo fato de
José Rodrigues, por vezes acusado de monopolizar a tutela daqueles índios a fim
de obter mão de obra para as suas fazendas, ter casado uma de suas filhas justamente
com o Capitão Miguel Rodrigues da Costa. Sabe-se, porém, que esse primeiro
governante e líder dos primitivos habitantes de Valença não sobreviveu à “caça aos gentios” promovida na região.
Alguns anos depois registraram que “com a
divisão das terras da região, os selvagens, reduzidos a um pequeno número e
desanimados com a morte de um de seus maiorais – o Bocumam – começaram a passar
para outras hordas...”
Os últimos Coroados
Ao contrário
do que a historiografia tradicional colocava – que os Coroados se extinguiram
com a expansão do café, novos e aprofundados estudos demonstram que um projeto
das elites de Valença com objetivo de se apropriar das terras indígenas da
área, no século 19, foi o grande responsável pelo desaparecimento dos índios na
região do Vale do Rio Preto. Estima-se que eles “desapareceram” logo após a
Câmara ter apropriado as terras da sesmaria dos Coroados, em 1836, o território
onde se fundou o aldeamento de Valença (1803), exatamente a área central da
atual cidade.
Como vimos, desde
os primeiros relatos oficiais dos índios que habitavam o chamado Sertão do Rio
Preto, denominou-se genericamente Coroados a todos eles, não obstante serem parte
de diversas sociedades indígenas, todas linguisticamente vinculadas à família
Puri-Coroado.
Esses povos
habitavam um vasto território, em ambas as margens do rio Preto, que
atravessavam sem dificuldade porque sabiam fazer “uma amarra de cipós”, a qual
prendiam de uma a outra parte do rio e passavam todos agarrados a mesma amarra.
Em 1814, essa população indígena foi calculada em 1.400 pessoas.
De acordo com
o Relatório da Presidência da Província do Rio de Janeiro, de 1835, a maior
parte das terras da Aldeia de Valença em que habitavam os índios se achavam
ocupadas “por intrusos” que nelas se estabeleceram, “de modo que hoje pouco
terreno ocupam”. Em outro Relatório daquela mesma Província, datado de 1843,
foram taxativos: “Em Valença desapareceu o aldeamento que deu origem a esta
Vila, e os índios que restam vagam, em pequeno número sem domicílio, ou
residência certa”. E, em 1850, ratificaram a informação anterior: “Aldeias
antigamente fundadas em Valença, Mangaratiba e Rezende desapareceram
inteiramente (...) Em Valença há alguns índios sem domicílio certo”.
A seguir, por
meio de um ofício da Câmara Municipal de Valença, de 1872, em resposta a uma
portaria do Governo da Província do Rio, afirma-se que era em número de vinte
os últimos Coroados da região: “Essas raças têm quase totalmente desaparecido
deste município, restando, unicamente, por ele dispersas cerca de 20 (...) e,
os poucos que escaparam aos flagelos, foram aldear em outros lugares”. E, em
fins de 1880, os pesquisadores da Biblioteca Nacional escreveram á Câmara de
Valença, que respondeu no sentido de que já não mais existia índio habitando o
seu território. “Em 1814 os brancos eram em número de 688, e os índios de
1.400. Pouco a pouco estes foram desaparecendo, e atualmente não se os encontra
senão raríssimamente, e nenhum existe em estado selvagem”.
E, na edição
do jornal de Bom Jardim de Minas/MG chamado “O Satélite”, de 31 de maio de
1939, sob o título “Um fenômeno”, noticiou-se a descoberta daqueles que podem
ser considerados os últimos dos Coroados do Sertão do Rio Preto, outrora
conhecido por “Sertão dos Índios”:
“Chegou
ao conhecimento da redação o fato de ter sido observado a existência de
anõezinhos semi-selvagens, próximo à cidade. Foram, pela redação, encarregadas
duas pessoas de confiança, e conhecedoras do local, para uma observação na
mesma mata. As pessoas encarregadas, Srs. José Augusto Afonso e Sebastião
Custódio, foram à Mata do Governo e lá nada registraram. Mas, na Mata do Cruz,
foram vistos dois bugres, adultos, com dois filhinhos, sendo possível que esses
indígenas, que representam os últimos remanescentes das tribos existentes no
município, viessem às matas do Governo, que estão bem próximas à cidade e foram
vistos apenas os filhos e que foram tomados por anãosinhos, pois o informante
não poude saber se tratava de adultos ou creanças.”
FONTES:
Arquivo Público Mineiro. APM,
SG-Cx.68-Doc 04, 6, 7, 8, 9 e 10;
BUENO, Eduardo. Náufragos,
Traficantes e Degredados – As primeiras expedições ao Brasil;
DELGADO, Alexandre Miranda.
Memória Histórica sobre a Cidade de Lima Duarte e seu Município;
FERREIRA, Luis Damasceno.
História de Valença;
HISTÓRIA REGIONAL DO BRASIL, artigo de autoria de Henrique Furtado Portugal;
IÓRIO, Leoni. Valença ontem e
hoje;
LEMOS, Marcelo Sant’ana. O índio
virou pó de café?;
MAGALHÃES, Rodrigo. Descoberto da
Mantiqueira – O Sertão Prohibido do Rio Preto;
SANT-HILAIRE, Auguste de. Viagem
pelas Províncias do Rio de Janeiro e Minas Gerais;
REGISTRO DA IGREJA CATÓLICA DE BARBACENA/MG - 1706/1999 (documentação gentilmente cedida por Marcos Paulo de Souza Miranda, membro do IHGMG);
SILVA, Joaquim Norberto de Souza
e Silva. “Memória Histórica e Documentada das Aldeias de Índios do Rio de
Janeiro”;
*Rodrigo Magalhães,
pesquisador e historiador riopretano