Seguidores

quarta-feira, 21 de abril de 2021

TIRADENTES E O MACRÓBIO HISTÓRICO

 Blog Rio Preto Noutros Tempos - por Rodrigo Magalhães*



Hoje se comemora o feriado de Tiradentes, o patrono cívico do Brasil. Ele foi preso em dez de maio de 1789, acusado de ser o principal líder da Inconfidência Mineira. Foi condenado e, em 21 de abril de 1792, brutalmente enforcado e esquartejado pelas autoridades portuguesas. Isso tudo aprendemos nas aulas de História, ainda criança. Mas o que pouca gente sabe é que Tiradentes permaneceu por alguns anos à serviço na zona da mata mineira, mais especificamente na região do Vale do Rio Preto, onde à época também atuava outro importante personagem inconfidente – José Aires Gomes.

No entanto, causa-nos ainda maior surpresa a descoberta da existência de um macróbio histórico que viveu na atual vila turística de Ibitipoca, em Lima Duarte/MG, no final do século 19. Esse senhor de idade extremamente avançada teria relatado ao Promotor Público local que, na adolescência, conhecera Tiradentes, revelando-nos detalhes e curiosidades sobre o personagem.

Boa leitura!

O caminho do Menezes

Durante todo o século XVIII, inúmeras vias alternativas ao Caminho Novo vão sendo abertas, todas, inicialmente, com a finalidade de encurtar distâncias. Uma dessas estradas construídas ainda no fim de século XVIII, “menor, mas não menos importante que suas contemporâneas e muito movimentadas estradas do ouro”, foi o Caminho do Menezes, “a segunda estrada oficial que ligaria Minas ao Rio de Janeiro”.

Antes de retornar a Vila Rica de sua viagem ao Descoberto da Mantiqueira, dom Rodrigo determinou que se construísse uma nova estrada pelas margens setentrionais do rio Preto, “que divide essa capitania da do Rio de Janeiro, e (...) se encontravam várias picadas por onde se suspeitavam passar, ou podiam passar extravios, o que tudo evitou com guardas e patrulhas, vindo assim a ficar acautelado qualquer descaminho”. E, a seguir, mandou edificar uma ponte a fim de facilitar a passagem sobre o rio Preto para os transeuntes desse caminho, exatamente na região da Povoação do Presídio do Rio Preto em que anos mais tarde se instalaria o Registro (da “Passagem do Rio Preto”).

Ainda em 1781, expediu ordens ao Comandante do Destacamento do Caminho Novo, Alferes Joaquim José da Silva Xavier, o Tiradentes, no sentido de que pudesse dar conta de suas atividades de fiscalização das obras de construção da nova estrada, que ficou conhecida como o Caminho do Menezes, em referência a esse que foi o 8º Governador e Capitão-General da Capitania de Minas Gerais, Rodrigo José de Menezes.

Quando visitou a região, constatara que, para neutralizar o extravio de ouro, seria preciso construir uma estrada à margem do lado norte do rio Preto. “Embora sua construção tenha sido tardia para seu propósito, que era dificultar o contrabando de ouro, então muito grande na região do ‘Sertão do Rio Preto’, que hoje compreende todos os municípios de Valença, Rio das Flores, Belmiro Braga, Rio Preto e Santa Rita de Jacutinga, essa estrada muito contribuiu para o desbravamento do Vale do Rio Preto, um dos principais sub-afluentes do rio Paraíba do Sul.”

O alferes Tiradentes

Esse caminho saía da Estrada Real (Caminho Novo) da “região chamada Porto do Meneses, atual Além Paraíba”, e à altura de Matias Barbosa, sempre em território mineiro, passava por Belmiro Braga, Três Ilhas, Porto das Flores, São Sebastião do Barreado e chegava a Rio Preto. Ou seja, a quase totalidade do percurso dessa importante estrada estava situada na região outrora denominada Descoberto da Mantiqueira, atual zona da mata mineira.

As fontes primárias, referentes à construção da mencionada estrada, assim como o mapa, fazem parte do valioso acervo da antiga fazenda da Rocinha da Negra, hoje denominada Cabuí, cujo acervo encontra-se em mãos de particular.

Configurou-se, assim, no segundo caminho oficial (alternativo) de ligação entre Minas e Rio, apesar de se ver na carta geográfica denominada “Mapa do Cêrtão do Rio Prêto para baixo”, de Ignácio de Souza Werneck, datado de 1808 (que se encontra na Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro), a existência de diversos outros caminhos “auxiliares” ilegais ligando-se à Estrada Geral, como o do Pilar, do Azevedo, do Tinguá, da Estrella e da Margem do Paraíba.

Interessante notar que a vigia do rio Preto deveria mesmo ser permanente e necessária. Por ser a região uma rota propícia ao contrabando e à sonegação de impostos, visualiza-se, da mesma forma, outros três caminhos extraoficiais no mais antigo mapa da região de Rio Preto de que se tem registro. Datado de 1803, anexo ao requerimento de sesmaria das terras que se situam à margem fluminense do rio Preto, no exato território onde se assentou o limítrofe distrito de Parapeúna (Valença/RJ), iniciavam esses caminhos alternativos que partiam em direção ao Rio de Janeiro.

A missão fora designada à pessoa certa. Tiradentes tinha nove anos quando perdeu a mãe, e onze quando perdeu também o pai. Logo foi assumido pelo tio e padrinho Sebastião Ferreira Leitão que, além de minerador, era também cirurgião-dentista registrado. Foi com ele que o futuro Alferes aprendeu a sua primeira profissão. Tiradentes devia ter dezoito, talvez dezenove anos, quando conheceu muito Minas Gerais em longas viagens como tropeiro, levando e trazendo gado e mercadorias, no circuito Rio, Minas e Bahia. Conheceu a serra e o sertão, os caminhos regulares e os alternativos.

Não eram raros os momentos em que sua destreza como dentista era convocada para o trato tanto de escravos quanto de senhores. Anos depois, perante o tribunal, diria que “conhecia muita gente em razão da prenda de pôr e tirar dentes”.

Largou a vida de tropeiro em 1755, quando já conhecia Minas inteira. O governo da Capitania estava organizando o Regimento Regular de Cavalaria de Minas. A tropa paga: um exército regular, pago pelo erário, profissional. Os oficiais deveriam ser homens brancos e de boas famílias. E Silva Xavier estava entre os admitidos. Foi designado como Alferes, atual Segundo-Tenente.

No dia 19 de julho de 1781, dom Rodrigo José de Menezes, então governador da Província de Minas, mandou expedir ao Comandante do Destacamento do Caminho Novo (abrangia os territórios de Paraíba do Sul, Paraibuna, Juiz de Fora, Barbacena etc.) – o Alferes Joaquim José da Silva Xavier, na época residente na fazenda da Rocinha da Negra (hoje denominada Cabuí), em Simão Pereira – instruções pelas quais deveria reger-se. A ele estava encarregada a vigilância das margens do rio Preto.

Naquele mesmo ano que chegou ao Comando da Patrulha do Caminho Novo, Tiradentes também foi responsabilizado pela importante obra do Caminho do Menezes, porque seria essa a segunda estrada oficial que ligaria Minas ao Rio de Janeiro. E enquanto a estrada legal era aberta, Tiradentes partia acompanhado de seus soldados e de outro inconfidente frequentador da região, José Aires Gomes, pelas trilhas ilegais em busca de assaltantes. Tiradentes, que já era ligado a João Rodrigues de Macedo, também se aproximou nessa época do abastado Aires Gomes, sócio fazendeiro do contratador Macedo. 

Além da vigilância da região, consta dos registros históricos conhecidos que Tiradentes tinha como incumbência identificar possíveis minas de ouro no Vale do Rio Preto. Por esse motivo, percorreu tantas vezes essa região, onde fora incumbido de listar todos os moradores dessa zona proibida, desde a nascente do rio Preto até onde se encontra com o rio Paraibuna. E, em uma dessas passagens pela região central do Descoberto da Mantiqueira, o cavalo que Tiradentes havia escolhido para conduzi-lo por essas paragens acabou sendo levado pela correnteza das águas do rio Preto.

Alferes da tropa paga de Minas Gerais, Joaquim José da Silva Xavier, o ‘Tiradentes’, executor de mais de uma ‘ronda no Mato’, nas áreas Proibidas do Sertão de Rio Preto e do ‘Rio do Peixe’(...) fez por ordem de D. Rodrigo José de Menezes um levantamento completo dos moradores da Mantiqueira e das cabeceiras do rio Preto até sua foz no Paraibuna. Em uma das rondas, morreu um cavalo do uso de Tiradentes, que tentava atravessar o rio Preto, de Minas para a Capitania do Rio de Janeiro, em busca de pasto, tendo sido lavrado o respectivo auto de responsabilidade da baixa do animal.

Em carta de 26 de setembro de 1781, Tiradentes deu conta a dom Rodrigo da fundação do “Caminho do Menezes”, com vigilância sobre os mapas do Rio Preto. Todavia, ao que tudo indica, Tiradentes permaneceu ainda por mais alguns anos frequentando essa região até ser preso, em dez de maio de 1789, acusado de ser o principal líder da Inconfidência Mineira (foi enforcado em 21 de abril de 1792). Consta, inclusive, que Tiradentes teria se abrigado por uma noite na Fazenda São Mateus (situada em território do município de Juiz de Fora, inserido no Descoberto), quando ele viajava para a Corte, onde, dias depois, seria brutalmente enforcado e esquartejado pelas autoridades portuguesas.

Interessante notar que, ainda no ano de 1781, quando o Governador dom Rodrigo visitou essa área até então proibida e iniciou a concessão de sesmarias na região, Tiradentes foi o procurador de duas pessoas para tomar posse de “terras de cultura no novo descoberto da Mantiqueira”. As procurações eram assinadas, uma por seu irmão Padre Antônio da Silva Santos, radicado na Ressaca (Ressaquinha), e a outra pelo Tenente João Ferreira da Cunha, residente em Congonhas do Campo.

A corrida por terras na região era tão grande, pensando-se na possibilidade de obtenção do ouro, que o próprio Tiradentes recebeu uma concessão de datas minerais “nas margens do rio Paraibuna entre este e o rio Preto, na paragem Porto do Menezes”. Consta, inclusive, que José de Oliveira Fagundes, que foi o advogado de Tiradentes, também atuava nessa região, sendo que obteve uma sesmaria em Valença, em 1817.

O macróbio histórico

Perto de 1892 (ou seja, cem anos após o enforcamento de Tiradentes), a imprensa publicou uma matéria bombástica: um macróbio (pessoa extremamente antiga) habitante de Ibitipoca (distrito de Lima Duarte/MG) que “conhecera Tiradentes em Vila Rica”. Ele acrescentava particularidades à biografia de Joaquim José da Silva Xavier. Segundo ele, “o alferes costumava fazer ponto na igreja do Rosário tocando viola e cantando”, e que “mataram Tiradentes porque anunciou estas leis que estão aí governando, é assim a justiça dos homens”.

Logicamente, a notícia da descoberta de uma pessoa ainda viva em 1892, que conviveu com a geração que conheceu Tiradentes, despertou grande curiosidade. Jornais regionais de Juiz de Fora, do Rio de Janeiro e até mesmo de São Paulo buscaram maiores informações desse macróbio morador de Ibitipoca. Consta que quem fez a comunicação do fato com a imprensa foi nada menos que o Promotor de Justiça em Lima Duarte por volta de 1892, Dr. Augusto Vaz Mourão:

Vou dar-vos uma notícia de inestimável valor – um macróbio histórico. Severino Francisco Pacheco, filho de São Miguel de Piracicaba, reside nesta cidade (Lima Duarte) com 115 anos de idade. Tem os cabelos pretos e as barbas apenas grisalhas; é de estatura mediana e quem o vir passar nas ruas, e não conhecendo, não pode presumir que tenha mais da metade da idade que atesta, passo firme e corpo perfilado. É Pacheco casado em terceira núpcias com uma menina de 60 anos, em relação a si; somente do primeiro matrimônio houve três filhos, tendo falecido há pouco o seu morgado (?) com 80 anos de idade e que na aparência representava ser mais velho do que o pai. Pacheco faz ainda algum serviço concernente a seu ofício de seleiro, profissão esta que tomou logo que retirou-se da praça. Diariamente ouve todas as missas que são ditas na matriz, e de joelhos toda a missa, sem apoiar-se em encosto algum.

Pacheco foi nos tempos coloniais praça de cavalaria do segundo regimento em Ouro Preto, em cujo posto permaneceu até a primeira viagem de Pedro I a Minas, a quem veio encontrar em Barbacena, como cabo de parada, dando pouco depois sua baixa. Pacheco conheceu de perto o Tiradentes, com quem esteve diversas vezes em Ouro Preto, no largo do Rosário, em uma casa que Tiradentes frequentava para tocar violão e cantar modinhas no que era perito: diz Pacheco que tinha 14 ou 15 anos quando ouviu Tiradentes tocar violão.

Pacheco tem gravado na memória o físico de Tiradentes, como mais de uma vez me tem referido: homem alto, simpático, bonito e gênio alegre são os traços que dá Pacheco ao Tiradentes.


FONTES:

ARQUIVO PÚBLICO MINEIRO. Seção Colonial, Códice 224, fls.63;66v-70.

BRAGA, Diva Maria Portugal. O Prefeito do Centenário: Guilherme Furtado Portugal.

DELGADO, Alexandre Miranda. Memória Histórica sobre a Cidade de Lima Duarte e seu Município.

DORIA, Pedro. 1789: A história de Tiradentes e dos contrabandistas, assassinos e poetas que lutaram pela independência do Brasil.

IÓRIO, Leoni. Valença de ontem e de hoje: Subsídios para a história de Valença.

LAMANNA, Rita Maria Souza Lima Leal. Rio Preto, nossa história.

MAGALHÃES, Rodrigo. Descoberto do Rio Preto – O Sertão Prohibido do Rio Preto.

RESTITUTTI, Cristiano Corte. As Fronteiras da Província: Rotas de Comércio Interprovincial (Minas Gerais, 1839-1884).

Revista do Instituto Histórico e Geográfico de Minas Gerais. Belo Horizonte, vol. XVI,

1975.

SEBRAE. Os caminhos do café.

*Rodrigo Magalhães, pesquisador e historiador riopretano

segunda-feira, 19 de abril de 2021

OS COROADOS: A SAGA DOS ÍNDIOS NO VALE DO RIO PRETO

 Blog Rio Preto Noutros Tempos – por Rodrigo Magalhães*



Os povos indígenas contribuíram de forma significativa para a formação do povo valeriopretano. Oriundos de Campos dos Goytacazes/RJ, das cercanias da foz do rio Paraíba do Sul, curso d’água que lhes guiou até chegarem ao outrora Sertão do Rio Preto, nas primeiras décadas do século 17, fugindo da colonização da costa.

Esta região atualmente é conhecida por Vale do Rio Preto (parte integrante do Vale do Café), sita na zona da mata mineira e no sul fluminense, na divisa dos Estados de Minas Gerais e do Rio de Janeiro, e foram justamente esses indígenas que denominaram o principal flume que corta a região de Paraúna (ou Parapeúna) – rio Preto, um dos principais afluentes do rio Paraíba do Sul.

           Apelidados genericamente de Coroados, esses indígenas foram os primeiros habitantes da região. Por isso, com o propósito de preservação da memória desses povos nativos, segue abaixo um breve histórico da saga dos Coroados no Vale do Rio Preto, coligido de fontes diversas da historiografia regional. A narrativa detalha o modo de vida, os costumes, as aldeias e os aldeamentos, bem como lendas, personagens e batalhas. Boa leitura!

Coroados do Rio Bonito

Logo que desembarcou no Rio de Janeiro, em 1º de junho de 1816, o francês Auguste de Saint-Hilaire dirigiu-se às proximidades da região de Valença/RJ, onde um fazendeiro reuniu alguns índios Coroados, que “habitam as florestas vizinhas do rio Bonito” (atual distrito de Pentagna), e rogaram que dançassem a fim de agradar o viajante europeu. Conta ele que, ao término da apresentação, o mais jovem, chamado Buré, mantendo-se de pé, dirigiu-lhe o discurso seguinte em mau português: “Esta terra nos pertence, e são os brancos que a cobrem. Desde a morte do nosso capitão, somos escorraçados de toda parte, e não temos mais nem lugar suficiente para repousar a cabeça. Dizei ao rei que os brancos nos tratam como cães e rogai-lhe que nos dê terras para podermos construir uma aldeia”.

Cientista de notáveis méritos, Saint-Hilaire era também um fino observador dos costumes, do modo de vida e das instituições dos povos por ele visitados no Brasil. Além de ir ao encontro dos índios Coroados do Rio Bonito em 1816, esse francês passou ainda por três oportunidades pelo Registro do Rio Preto: 1817, 1819 e 1822. O seu diário de viagem constituiu o esboço de extensa e importante obra posterior, em que está registrada parte considerável da memória histórica de nossa região. Segundo ele, até 1800 os Coroados eram os “senhores da região compreendida entre o Parahyba e o Rio Preto”. Além de habitar todo esse território que a seguir seria denominado de Sertão do Rio Preto, consta que esses indígenas “faziam incursões frequentes no território das parochias vizinhas”.

          Por fim, em sua última passagem por Valença em 1822, Saint-Hilaire observou em relação aos índios Coroados que, se “há apenas 50 anos eles possuíam toda essa região, onde nenhum branco teria, certamente, a ousadia de se mostrar, na época dessa viagem era no meio dos filhos de portugueses, feitos senhores do país, que erravam os escassos restos da sua nação”. 

  

Árvore genealógica dos Coroados

Vem de Saint-Hilaire a explicação mais aceita sobre a chegada desses índios à região do Vale do Rio Preto, originários dos Goitacazes da foz do rio Paraíba do Sul no mar, bem como a respeito da denominação genérica de Coroados ser ligada ao tipo de corte de cabelo adotado pelos mesmos em seu novo habitat: “Parece certo que tiveram por progenitores os índios Goitacazes que, expulsos pelos portuguezes, por volta de 1630, dos campos vizinhos á foz do rio Parahyba no mar (Campos dos Goitacazes), se dispersaram pelas florestas de Minas e do Rio de Janeiro. Os Goitacazes não podiam conservar, em florestas quase impenetráveis, os hábitos contrahidos no meio de campos inteiramente descobertos; renunciaram á longa cabeleira, e o modo por que a cortaram lhes fez dar, por seus vencedores, o nome de Coroados”. E continua: “É bom acrescentar ao nome desses Coroados o de um rio que corre na sua região, o Rio Bonito, e chamá-los de Coroados do Rio Bonito. Por este meio, impedir-se-á confundi-los com os Coroados de Mato Grosso, com os de São Paulo e, ainda, com os Coroados do Rio Chipotó”.

Desde os primeiros contatos, logo após o descobrimento do Brasil, os Goitacazes foram considerados pelos europeus como “selvagens ferozes e antropófagos”, ou seja, eram bravos e comiam carne humana. E no decorrer dos anos, os Goitacá (ou Waitaka), “tapuias” do grupo Jê, forram tidos como a mais agressiva dentre todas as nações do litoral brasileiro. “Intrépidos pescadores de tubarão e canibais inveterados”.

Os primeiros registros desses indígenas no Vale do Rio Preto, datado de 1783, confirmam que se tratava de “gentios bravios”. “Com estes homens se não pode tratar da paz, sem as armas nas mãos pelo eminente perigo que há por serem faltos de todas a boa fé” – revela-nos uma interessante correspondência do comandante do Corpo de Ordenanças de Rio Preto, de agosto daquele ano, pedindo autorização para atirar nos índios que, segundo ele, tinham atacado alguns fazendeiros da região, matando mais de dez pessoas entre brancos e escravizados negros. Informava, ainda, que os indígenas tinham levado todos os corpos para a aldeia, sugerindo, assim, que ainda preservavam o costume da antropofagia.



A Batalha do Sertão do Rio Preto

Naqueles Certões da parte da lem do Rio Preto, distante, meia, uma, duas, e mais léguas, se achão quatro Nações de gentios diferentes, quais são Coroados, Cahicenes (sic.), Poris (sic.) e Mariquitas. Com estes homens se não pode tratar da paz, sem as armas nas mãos pelo eminente perigo que há por serem faltos de todas a boa fé” – acrescenta-nos a mesma correspondência do comandante do Corpo de Ordenanças de Rio Preto, do final do séc. 18.

Corria o ano de 1783. Quinze de agosto. Dois jovens brancos, acompanhados de dois escravos, achavam-se trabalhando no ribeirão Pirapetinga, cuja foz faz barra no rio Preto (cachoeira de Barbosa Gonçalves).  Os quatro tinham a atenção voltada para o ouro que encontravam com facilidade naquele local, quando um grupo de indígenas os surpreendeu. Logo após render os quatro, os gentios os conduziram para a sua aldeia situada a poucas léguas daquele local.

Enquanto a notícia do sequestro ainda se espalhava pela região, no dia 28 do mesmo mês aconteceu mais um ataque indígena, um pouco acima da margem do rio Preto onde ocorrera o primeiro. Desta vez, os gentios teriam matado doze pessoas: quatro homens brancos e oito negros escravizados. Logo após, conduziram todos os corpos para a aldeia. A diferença é que nesse segundo atentado teve testemunha. Um casal de escravos conseguiu escapar do ataque e relatar o ocorrido. Constou, inclusive, que a escrava se feriu com mais gravidade no conflito, “vindo a preta frechada em suas partes...

A partir de 1781, quando o presidente da província de Minas visitou pessoalmente a região e decidiu abrir o até então Sertão Prohibido do Rio Preto para a mineração, as primeiras sesmarias foram concedidas e muitas pessoas migraram para o território até então habitado pelos índios. Ao encontrarem ouro em abundância no rio Preto e em seus afluentes, a região passou a ser conhecida por Descoberto da Mantiqueira. Esses desbravadores eram incentivados pela Coroa portuguesa a se estabeleceram por aquelas paragens, com o intuito de aumentarem o recebimento do imposto devido pela extração aurífera (quinto).

Como era de se esperar, os indígenas se opuseram a isso e mostraram-se revoltosos com a invasão e a posse indevida de suas terras. De acordo com o referido capitão, chamado Francisco da Costa Pereira, morador e comandante da região, foi no decorrer do ano de 1783 que ocorreram os primeiros conflitos entre brancos e índios nessa região do Vale do Rio Preto. Segundo ele, os gentios inicialmente devassavam as plantações das fazendas e furtavam os mantimentos desses primeiros sesmeiros. Mas, depois dos sequestros e assassinados, os moradores reagiram e decidiram se vingar, iniciando, então, uma verdadeira caça ao índio.

Imediatamente organizaram um abaixo-assinado, em que aparece um número impressionante de oitenta e cinco pessoas que já residiam nessa região, com suas respectivas famílias e seus escravos, que assinaram a mencionada correspondência endereçada para Vila Rica (Ouro Preto), na pessoa de “José Antonio de Mattos, Official Mayor da Secretaria”, pedindo autorização para atirar nos índios: “(...) vem os suplicantes em consternação cauzada pelos gentios que vizinhamente se acham aldeados fazendo distúrbios como foi matarem cuatro brancos e oito pretos e mais dois brancos e dois pretos que se presume este quatro os levaram vivos sendo causa de ter despejado todos os moradores daquele sertão não podendo cultivarem as sesmarias e inda no risco de fazerem dano aos moradores... pedem licença para no caso de estarem renitentes se lhe poder atirar para os atemorizar afim de melhor se renderem e resgatar aqueles cuatro que se presume estarem em poder daqueles ireges (hereges)”.

Todavia, ao que tudo indica, encontraram uma quantidade maior do que imaginavam de indígenas pelas matas do Sertão do Rio Preto. Fez-se necessário, então, pedir auxílio aos demais Corpos de Ordenanças existentes nas proximidades, que eram as Companhias de Aiuruoca, Andrelândia, Carrancas, Serranos, Alagoa, Santana do Garambéu, Ibitipoca, Santa Rita de Ibitipoca e Ibertioga.

Organizou-se, assim, uma verdadeira guerra contra os índios que habitavam os chamados matos gerais do Rio Preto. Esse expressivo contingente militar, fortemente armado, dirigiu-se para a região, e certamente obtiveram êxito nessa segunda tentativa. Pode-se concluir que essa batalha de grandes proporções foi a principal responsável pela drástica redução da população indígena que habitava essa região do Vale do Rio Preto, onde atualmente estão situados os municípios de Valença/RJ, Rio Preto/MG e Santa Rita de Jacutinga/MG.



Os Aldeamentos

A partir dessa grande batalha, todos aqueles índios que aceitassem abandonar suas aldeias de origem e desistissem do seu modo de vida tradicional, sem oferecer resistência armada, passavam a ser considerados "índios de pazes" ou "índios amigos"; eram catequizados, batizados e aldeados em outras áreas, de onde eram periodicamente retirados para prestarem serviço aos colonizadores.

Tem-se registro de três aldeamentos promovidos na região do Sertão do Rio Preto: dois em Valença/RJ – “Aldêa de N. S. Senhora da Glória de Valença” (na parte central da atual cidade de Valença, formado pelos índios Coroados) e ”Aldêa de Santo Antônio do Rio Bonito” (no atual distrito de Conservatória, composto por índios Araris), e outro em Santa Rita de Jacutinga/MG - “Aldêa da Serra da Jacutinga” (próximo a atual cidade de Santa Rita de Jacutinga, habitado pelos temidos índios Puris).

Logo após o processo de aquartelamento, os índios dos aldeamentos começavam a ser batizados de forma mais sistemática. São poucos os registros de batismos existentes desses primeiros habitantes do território do Sertão do Rio Preto. Em 25 de maio de 1801 foi batizada em Rio Preto “Felícia Maria do Espírito do Santo, gentia do mato que por si pediu o batismo dizendo que nunca fora batizada”. Na mesma data foi batizada “Maria, de 10 anos, mais ou menos, filha natural da mesma Felícia”. 

A maior parte dos sacramentos aconteceram em Rio Preto, a povoação mais antiga da região que na época era chamada de "Presídio do Rio Preto", na Ermida de Nosso Senhor dos Passos, que se situava no atual cemitério do Senhor dos Passos, no centro da cidade. Essa pioneira capela do Vale do Rio Preto foi erigida no século XVIII. Em 1791, quando Barbacena foi elevada à Vila, uma de suas capelas filiadas era justamente a da "Aplicação de Nosso Senhor dos Passos do Rio Preto". Por essa razão, os apontamentos mais interessantes em relação aos indígenas da região se encontram nos Registros da Igreja Católica de Barbacena.

 


Aos 26 de janeiro de 1807 anos na Ermida do Senhor dos Passos do Rio Preto, filial desta Matriz de Barbacena, o padre José Luiz Côrrea, de licença minha batizou e pôs os santos óleos a Antônio, inocente, filho natural de Teodora Ferreira Índia. Foram padrinhos: Antônio José de Freitas e Inez Índia, do que mandei fazer...”. Portanto, foi batizado um recém nascido indígena, filho de uma índia já batizada, cuja madrinha também era uma indígena.



Dois anos depois, Inez Índia aparece novamente nos registros paroquiais. Certamente era uma pessoa com destaque social em Rio Preto, sendo que um filho seu foi sepultado dentro da única igreja local, honraria permitida apenas para aqueles que faziam parte da nobreza rural ou da burguesia urbana. Chama a atenção também o fato de a ordem para o local do sepultamento ter sido emanada do Diretor dos Índios do Sertão do Rio Preto e potentado minerador. Aos 6 de novembro de 1809 anos faleceu Francisco, inocente, filho de Francisca Índia; foi encomendada de licença minha, pelo padre Antônio Vicente de Almada, e sepultado dentro da Ermida de Nosso Senhor dos Passos de Rio Preto, por ordem do Capitão Miguel Rodrigues da Costa”. 

 


        Outro indígena do Vale do Rio Preto que foi sepultado na parte de dentro da capela, e não no seu adro, foi José Índio, que provavelmente era outro destacado indígena daquela região, pelo menos sob a ótica católica do colonizador luso-brasileiro. Aos 22 de setembro de 1810 anos, faleceu com sacramentos da penitência e unção, José Índio, adulto; foi encomendado de licença minha pelo padre Antônio Vicente de Almada e sepultado dentro da Ermida do Senhor dos Passos do Rio Preto, filial desta matriz de Barbacena, do que mandei fazer o presente assento. Vigário José Agostinho Fialho de Castro”.

***

Mas de todos os aldeamentos promovidos na região, sem dúvida o de maior destaque é aquele onde se fundou uma capelinha em 1803 sob a invocação de Nossa Senhora da Glória (provavelmente por influência do Diretor dos Índios, José Rodrigues da Cruz, proprietário da Fazenda que já há alguns anos denominara de “Nossa Senhora da Glória da Paraíba do Sul”), tomando o nome de Valença em honra ao então vice-rei D. Fernando José de Portugal e Castro, descendentes dos nobres de Valença (Portugal). 

E foi a formação desse aldeamento que deu origem a atual cidade de Valença. Nesse sentido, confirma o viajante inglês R. Walsh, que passou por Valença em dezembro de 1828 e assim registrou: “Trata-se originalmente de uma das aldeias onde se instalavam os índios catequisados”.


O Cerro da Coroa

Diversas lendas regionais remetem aos povos nativos do Vale do Rio Preto. Mas, certamente, aquela denominada de O Cerro da Coroa, considerada a lenda valenciana por excelência, imortalizada em versos por poetas, é a mais emblemática e significativa da região.

Segundo essa fábula de mais de duzentos anos, a pequena colina escolhida para se erigir a pioneira capela de Valença, a partir da qual teve origem a cidade e a sua padroeira, era um local sagrado para os indígenas. De acordo com a tradição oral, era ali o lugar onde esses primitivos habitantes acreditavam avistar em determinadas ocasiões, sob o reflexo de intensa luz solar, uma grande e bela coroa em meio à extensa mata virgem.

Conta-se que no exato local onde hoje predomina soberana a suntuosa igreja Catedral de Nossa Senhora da Glória, no alvorecer do século 19, existia uma extraordinária “Árvore-Chorona”, circundada de uma ramagem que esporadicamente ficava repleta de flores, formando a configuração de uma coroa. Os índios chamavam o local de Juyteraipuira – Cerro da Coroa: Sarakena + oca, ou seja, lugar famoso ou da glória.

A relação afetuosa que os povos indígenas estabeleciam com a natureza fazia com que eles mantivessem uma conexão mais próxima e sagrada com a Terra. Por essa razão, o Juyteraipuira era um local sagrado para os Coroados, que na época de floração se dirigiam para o topo da Serra dos Mascastes e das Cobras, de onde podiam contemplar aquele extraordinário fenômeno da natureza que ocorria apenas em alguns períodos do ano.

De certos pontos dessas serras, os índios tinham a vista privilegiada do extenso tapete de mata virgem que cobria, ondulante, os montes mais baixos e os vales. E naquele cerro específico, parecia que o conjunto de ramificações menores e mais altas das árvores se movia, criando pequenas elevações arredondadas, como se fossem tumores que misteriosamente surgiam naquele ponto da floresta. O fenômeno surpreendia os indígenas que ali permaneciam o dia todo a contemplar e, sob a beleza de um anoitecer colorido e encantador, via ainda que inclinado para a Serra dos Mascastes, descer do céu um comprido filete de luz que se abria sobre aquela elevação, iluminando e dando ainda mais destaque à esplendorosa imagem em forma de coroa, posicionada bem ao centro do cerro.        

Com a chegada do elemento civilizador à região (“homem branco”), vê-se que aquele local que os Coroados tinham como mítico e sagrado, tratava-se, na verdade, de um cerro quase escampo, circundado por uma grinalda de árvores pequenas, troncos esbranquiçados e esguios, pouca folhagem, mas cheios de parasitas em flor. E a mancha de um lado, ao alto, era uma frondosa árvore que parecia “transpirar”, que os índios chamavam de “puira de pai-tucura”.

Constataram que, de fato, quem sob ela se encontrava, parecia ver cair lágrimas daquela extraordinária árvore, em certas ocasiões. E não eram de chuva, porque não chovia naquele dia; nem era de orvalho, pois a época não era própria dele. Assim, tendenciosos pela catequização daqueles índios que há pouco iniciara, interpretaram aquele fenômeno da natureza como um milagre. Edificou-se, então, à sombra daquela árvore uma singela capela, e determinou-se que aquele local de glória para os Coroados seria o ideal para a implantação do aldeamento indígena da região.

Por volta de 1817, quando adoecera o filho de um português que havia se casado com a índia mais bela dessas paragens, devoto de Nossa Senhora da Glória, ele teria feito uma promessa àquela santa: mandaria vir de Portugal uma imagem de N. S. da Glória, se o bebê se salvasse. Operado o milagre, cumpriu-se a promessa, instalando-se, então, um oratório na capelinha, onde a imagem foi posta à veneração dos primeiros valencianos - indígenas e portugueses. Nascia ali o núcleo central, do que seria mais tarde a cidade de Valença!



Os Diretores dos Índios

        Os povos indígenas contribuíram de forma significativa para a cultura, os costumes e a formação da população do Vale do Rio Preto. Foram eles também os principais responsáveis pelo enriquecimento dos primeiros colonizadores, notadamente como mão de obra inaugural, ainda no final do século 18 e início do seguinte. Á época houve uma verdadeira parceria entre esses percussores fazendeiros da região: visando terras, ouro e, principalmente, os índios.

Acredita-se que foi nas últimas décadas do século 17 que ocorreram os primeiros contatos dos bandeirantes paulistas com os índios que habitavam as florestas seculares e as matas virgens do então chamado “Cêrtão do Rio Prêto”. Mas são das últimas décadas dos 1700 os primeiros registros dos “Indios dos Certões dalem do Rio Preto”, conforme foram denominados primeiramente. Datam dos primeiros anos dos 1780 e dão conta de que viviam em um território que se estendia desde os atuais municípios fluminenses de Rio das Flores e Valença, passando pelos mineiros Santa Bárbara do Monte Verde e Rio Preto, indo até a região onde o município de Santa Rita de Jacutinga faz limite com Passa Vinte.

E com a chegada de várias outras famílias que migraram para a região a fim de cultivar as suas roças e, principalmente, a extrair ouro do rio Preto e seus afluentes, como era de se esperar, os índios se opuseram a isso e mostraram-se revoltosos com a invasão e a posse indevida de suas terras. Vencê-los, como às condições ambientais da mata Atlântica e à fauna que por lá vivia, era esforço para poucos.

        Foi nesse contexto que surgiu a figura do Diretor dos Índios e deu-se princípio à catequese e civilização dos mesmos. O fazendeiro José Rodrigues da Cruz, senhor da fazenda de Ubá, foi a primeira pessoa a ocupar esse importante cargo no Vale do Rio Preto, desde 1799, quando assumiu formalmente a função. Possuidor de extensas terras que careciam de mão de obra para explorá-las, ele procurou logo conquistar a simpatia desses indígenas. Valendo-se do subterfúgio de representá-los em requerimentos ás autoridades portuguesas, obteve com facilidade a prerrogativa de exercer controle sobre os índios da região, sem que isso pudesse ser caracterizado como escravidão (que feria os princípios da lei). Contornava, com esse expediente, os problemas de ordem jurídica e moral.

        Desse conluio participaria, além do Diretor dos índios (José Rodrigues), o Capitão Miguel Rodrigues da Costa (comandante do Presídio de Rio Preto) e o Guarda-mor Francisco Dionísio Bustamante Fortes (fundador da Fazenda Santa Clara), a última personagem a ocupar esse importante e vantajoso cargo, até o ano de 1820, quando faleceu. Contra o segundo a exercer a função de Diretor dos Índios do Vale do Rio Preto, o capitão Miguel Rodrigues, que era genro do antecessor, houve, inclusive, uma representação formal nesse sentido, diretamente na Assembleia Geral Constituinte, em 1823.

  Vários estudos e fatos novos dão conta de que uma boa parcela desses indígenas que habitaram o Vale do Rio Preto se prestou como reduto de mão de obra para a lavra mineral, agrícola ou serviços gerais na construção civil. Pois, na realidade, os negócios mais lucrativos de seus diretores concentravam-se em domesticá-los para servirem de “braços” em suas extensas fazendas. Era o chamado “ouro vermelho”, que nessas paragens à época era abundante, com predomínio dos Coroados.

O episódio mais emblemático que comprova o uso de mão de obra indígena na intensa mineração ocorrida na região, no entanto, foi uma tragédia que teria acontecido no final do século XVIII, a alguns quilômetros do centro da cidade de Rio Preto, nas proximidade de um pequeno curso d'água que até os dias atuais é conhecido por "Córrego das Almas". Assim registrou esse desastre de grandes proporções na obra História Regional do Brasil, o riopretano doutor Henrique Furtado Portugal, membro efetivo do Instituto Histórico e Geográfico de Minas Gerais:

“A tradição oral informa que a mineração de ouro terminou por minguarem os veeiros e por um acidente trágico que enterrou mais de 200 homens, entre brancos, índios e escravos num grande fosso escavado às margens de um pequeno córrego, afluente da margem esquerda do ribeirão da Conceição, pequeno e atrevido curso d'água que passou a ser chamado 'Córrego das Almas', muitos se benzem quando por ali transitam, principalmente à noite”. 



O Cacique Bocumam

Março de 1803. José Rodrigues da Cruz, então diretor de índios de Valença, escreve uma carta de ofício ao vice-rei do estado do Brasil, dom Fernando José de Portugal. Informa que estava envolvido em um reconhecimento de índios nas cabeceiras dos rios Preto e Flores, os Araris, “únicos que me parece restavam”, escreveria. Um ano depois, certa sociedade de índios Ararizes procurou José Rodrigues para denunciar alguns moradores do então Arraial do Rio Preto, em Minas Gerais. Queriam os índios encontrar uma solução para “um caso de conflito e morte entre a população indígena e os moradores riopretanos”.

O diretor então envia uma carta da Aldeia de Valença ao Sr. Comandante da Guarda do Presídio do Rio Preto, Capitão Miguel Rodrigues da Costa, na qual ele tenta contar o que foi a ele narrado por dois índios sobreviventes de uma tocaia: um índio com uma facada nas costas e o outro com um braço bem mal tratado e cortado. Queixaram-se esses índios Ararizes que nas proximidades do Presídio Velho de Rio Preto (atual Fazenda Santa Clara), avistaram uma plantação e, com fome, arrancaram umas mandiocas para se alimentarem. E que anoitecendo, dormiram no local, onde durante a noite apareceram três pessoas com facões e mataram três índios a facadas e feriram esses dois que escaparam... 

          As circunstâncias alimentavam rumores de crise ou levante de índios, liderados por um dos caciques, o Bocumam. Em geral, o cacique era uma espécie de rei e senhor de trinta, oitenta ou cem famílias que lhe obedeciam. Tudo se reduzia ao cacique, que era cabeça de governo. Tudo indica que Bocumam era o líder maioral dos índios do Sertão do Rio Preto e, por outro lado, o cacique mais respeitado e temido pelos brancos. Por isso, José Rodrigues envia outra carta ao Presídio de Rio Preto. Segundo ele, os índios, com as notícias das mortes, mostravam-se “revolvidos e ofendidos”. Como súditos do rei, a nação chefiada por Bocumam reivindicava por seus direitos e pressionavam-no mandar indagar os agressores e prendê-los. 

Até em uma terceira e última carta aos militares de Rio Preto, o diretor dos índios de Valença informa do sumiço de Bocumam e coloca em alertas aquelas autoridades, sobre o perigo de uma retaliação aos fazendeiros mineiros que esse fato poderia significar:...Bocumam, o capitão dos ditos índios foi buscar a sua Gente e até agora não vejo antes os que se achavam aqui na Aldeia no dia 28 do corrente, se retiraram todos para o Sertão...”

Não há registro do resultado dessa batalha que se anunciara. Talvez pelo fato de José Rodrigues, por vezes acusado de monopolizar a tutela daqueles índios a fim de obter mão de obra para as suas fazendas, ter casado uma de suas filhas justamente com o Capitão Miguel Rodrigues da Costa. Sabe-se, porém, que esse primeiro governante e líder dos primitivos habitantes de Valença não sobreviveu à “caça aos gentios” promovida na região. Alguns anos depois registraram que “com a divisão das terras da região, os selvagens, reduzidos a um pequeno número e desanimados com a morte de um de seus maiorais – o Bocumam – começaram a passar para outras hordas...”


Os últimos Coroados

Ao contrário do que a historiografia tradicional colocava – que os Coroados se extinguiram com a expansão do café, novos e aprofundados estudos demonstram que um projeto das elites de Valença com objetivo de se apropriar das terras indígenas da área, no século 19, foi o grande responsável pelo desaparecimento dos índios na região do Vale do Rio Preto. Estima-se que eles “desapareceram” logo após a Câmara ter apropriado as terras da sesmaria dos Coroados, em 1836, o território onde se fundou o aldeamento de Valença (1803), exatamente a área central da atual cidade.

Como vimos, desde os primeiros relatos oficiais dos índios que habitavam o chamado Sertão do Rio Preto, denominou-se genericamente Coroados a todos eles, não obstante serem parte de diversas sociedades indígenas, todas linguisticamente vinculadas à família Puri-Coroado.

Esses povos habitavam um vasto território, em ambas as margens do rio Preto, que atravessavam sem dificuldade porque sabiam fazer “uma amarra de cipós”, a qual prendiam de uma a outra parte do rio e passavam todos agarrados a mesma amarra. Em 1814, essa população indígena foi calculada em 1.400 pessoas. 

De acordo com o Relatório da Presidência da Província do Rio de Janeiro, de 1835, a maior parte das terras da Aldeia de Valença em que habitavam os índios se achavam ocupadas “por intrusos” que nelas se estabeleceram, “de modo que hoje pouco terreno ocupam”. Em outro Relatório daquela mesma Província, datado de 1843, foram taxativos: “Em Valença desapareceu o aldeamento que deu origem a esta Vila, e os índios que restam vagam, em pequeno número sem domicílio, ou residência certa”. E, em 1850, ratificaram a informação anterior: “Aldeias antigamente fundadas em Valença, Mangaratiba e Rezende desapareceram inteiramente (...) Em Valença há alguns índios sem domicílio certo”.

A seguir, por meio de um ofício da Câmara Municipal de Valença, de 1872, em resposta a uma portaria do Governo da Província do Rio, afirma-se que era em número de vinte os últimos Coroados da região: “Essas raças têm quase totalmente desaparecido deste município, restando, unicamente, por ele dispersas cerca de 20 (...) e, os poucos que escaparam aos flagelos, foram aldear em outros lugares”. E, em fins de 1880, os pesquisadores da Biblioteca Nacional escreveram á Câmara de Valença, que respondeu no sentido de que já não mais existia índio habitando o seu território. “Em 1814 os brancos eram em número de 688, e os índios de 1.400. Pouco a pouco estes foram desaparecendo, e atualmente não se os encontra senão raríssimamente, e nenhum existe em estado selvagem”.

E, na edição do jornal de Bom Jardim de Minas/MG chamado “O Satélite”, de 31 de maio de 1939, sob o título “Um fenômeno”, noticiou-se a descoberta daqueles que podem ser considerados os últimos dos Coroados do Sertão do Rio Preto, outrora conhecido por “Sertão dos Índios”:

 Chegou ao conhecimento da redação o fato de ter sido observado a existência de anõezinhos semi-selvagens, próximo à cidade. Foram, pela redação, encarregadas duas pessoas de confiança, e conhecedoras do local, para uma observação na mesma mata. As pessoas encarregadas, Srs. José Augusto Afonso e Sebastião Custódio, foram à Mata do Governo e lá nada registraram. Mas, na Mata do Cruz, foram vistos dois bugres, adultos, com dois filhinhos, sendo possível que esses indígenas, que representam os últimos remanescentes das tribos existentes no município, viessem às matas do Governo, que estão bem próximas à cidade e foram vistos apenas os filhos e que foram tomados por anãosinhos, pois o informante não poude saber se tratava de adultos ou creanças.”


FONTES:

Arquivo Público Mineiro. APM, SG-Cx.68-Doc 04, 6, 7, 8, 9 e 10;

BUENO, Eduardo. Náufragos, Traficantes e Degredados – As primeiras expedições ao Brasil;

DELGADO, Alexandre Miranda. Memória Histórica sobre a Cidade de Lima Duarte e seu Município;

FERREIRA, Luis Damasceno. História de Valença;

HISTÓRIA REGIONAL DO BRASIL, artigo de autoria de Henrique Furtado Portugal;

IÓRIO, Leoni. Valença ontem e hoje;

LEMOS, Marcelo Sant’ana. O índio virou pó de café?;

MAGALHÃES, Rodrigo. Descoberto da Mantiqueira – O Sertão Prohibido do Rio Preto;

SANT-HILAIRE, Auguste de. Viagem pelas Províncias do Rio de Janeiro e Minas Gerais;

REGISTRO DA IGREJA CATÓLICA DE BARBACENA/MG - 1706/1999 (documentação gentilmente cedida por Marcos Paulo de Souza Miranda, membro do IHGMG);

SILVA, Joaquim Norberto de Souza e Silva. “Memória Histórica e Documentada das Aldeias de Índios do Rio de Janeiro”;

*Rodrigo Magalhães, pesquisador e historiador riopretano

DAS LITEIRAS DO IMPÉRIO AOS PRIMEIROS AUTOMÓVEIS: BREVE HISTÓRICO DOS VEÍCULOS EM RIO PRETO

  Blog Rio Preto Noutros Tempos, por Rodrigo Magalhães *   “ Naqueles tempos felizes em que os veículos a motor ainda não circulavam com...